A comissão que discute a reforma do Código Civil no Senado ouviu, nesta quinta-feira (4), uma série de questionamentos às regras previstas para o ambiente digital e para a inteligência artificial. Durante a reunião presidida pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), especialistas alertaram que o texto pode criar insegurança jurídica e até frear a inovação no país.
A procuradora do Estado do Rio de Janeiro e advogada especialista da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Christina Aires Corrêa Lima, afirmou que as regras para o ambiente digital do projeto podem desestimular a inovação.
Uma das principais preocupações da CNI está relacionada à proposta de “responsabilidade objetiva para a cadeia de valor da Inteligência Artificial”. Lima destacou que a cadeia de valor não é linear, fazendo com que a indústria dependa de uma inovação prévia para chegar a outras, e que cada etapa não deve responder pela responsabilidade de outras. “O que dá mais segurança jurídica, além das documentações, é você restringir a responsabilidade da cadeia de valor”, disse, destacando que as diversas possibilidades de desdobramento para o uso da tecnologia.
Para exemplificar o problema, ela citou o caso hipotético de uso de um modelo geral de inteligência artificial, a partir do qual o Judiciário desenvolve a própria API para uso interno. Em seguida, um escritório de advocacia utiliza um modelo semelhante para elaborar sua própria API para petições. Se algum problema surgir, a cadeia de responsabilidades é difícil de rastrear.
Segundo a procuradora, essa falta de clareza provoca insegurança jurídica e pode desestimular a inovação.
Ela mencionou “falhas estruturais e de lógica legislativa” no livro de direito digital elaborado pela comissão. Para a procuradora, a separação das regras em um livro autônomo isola o direito digital ao invés de integrá-lo. Lima disse que existe uma “sobreposição regulatória” no projeto com potencial de causar insegurança jurídica para a indústria.
“Você coloca dentro de uma lógica do direito digital princípios que já estão na Constituição, na LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais], no Marco Civil da Internet, e de uma forma muito geral, que não dão efetivamente uma concretude a esses princípios”, frisou.
A procuradora considera que a regulação da inteligência artificial “usa a velha técnica de comando e controle” ao impor multas sem exigir os devidos ajustes nas condutas.
“O TCU aponta que não arrecadamos nem 3% das multas que todos os nossos órgãos administrativos aplicam, porque é inadequado. A administração pública aplica a multa e acha que fez seu papel, as empresas pagam e acham que está tudo bem ou discutem judicialmente porque a legislação é inadequada”, afirmou.
O relator-geral do projeto, Flávio Tartuce, rebateu dizendo que, para ele, o Marco Civil da Internet “não funcionou”. “Vamos ter um desafio sobre qual vai ser a centralidade: a pessoa ou a indústria. Com o devido respeito, a centralidade do projeto de lei é a pessoa humana. Essa vai ser a resposta que o Parlamento brasileiro terá que dar. A LGPD é uma lei centrada na pessoa humana”, enfatizou o relator.
Lima afirmou que a CNI também entende que a regulação deve ser centrada na pessoa humana. “O que nós queremos não é sair da regulação, é aparecer na regulação”, destacou a procuradora.
O presidente da Comissão de Direito Civil do Conselho Federal da Ordem dos Advogados (OAB), Pedro Zanette Alfonsin, disse acreditar que a mudança na legislação é necessária para evitar crimes e golpes no ambiente digital. “Regular o ambiente digital é, portanto, regular a própria vida contemporânea”, disse.
A professora Tainá Aguiar Junquilho, integrante do grupo de trabalho sobre IA do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sugeriu incluir o contexto eleitoral na regra para impedir, por exemplo, o uso de deep fakes nas eleições. “O projeto precisa dialogar com as demais legislações existentes”, destacou.
A sub-relatora do livro de direito digital elaborado pela comissão de juristas, Laura Porto, afirmou que as regras digitais foram feitas em “consonância” com a proposta geral.
Insegurança jurídica e regras expiradas no projeto digital do Código Civil
O diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), Osny da Silva Filho, afirma que a proposta “carece de unidade sistemática”, pois várias sugestões apresentadas há 12 meses já estão expiradas, como o tratamento de pessoas no direito digital.
Ele reiterou as críticas sobre a expressão “entidades digitais”, apontando que abre uma brecha para que esses não sejam tratados como coisas. Silva Filho também apontou a possível insegurança jurídica nas regras para contratos digitais.
“Ainda que haja divergências entre nós a respeito disso, todo mundo está olhando para o mesmo lugar. É importante a gente ter isso em mente”, ponderou.
Em resposta, a relatora-geral do PL 4/2025, Rosa Nery, se colocou à disposição para discutir a atualização do projeto. Tartuce disse que falar sobre segurança jurídica digital com base nas leis vigentes é uma “falácia”. “Não há segurança jurídica em temas de Direito Civil digital no Brasil”, frisou o relator.
A secretária Nacional de Direitos Digitais, Lílian Cintra de Melo, disse que o regime geral do Código Civil e do Código de Direito ao Consumidor são “mais protetivos e efetivos do que um regime especial”. Segundo Melo, as mudanças previstas no projeto desfazem o projeto de lei 2.338/2023, que cria um marco regulatório para a inteligência artificial.
“Ao invés de termos uma regra de responsabilidade civil específica para IA, vamos nos balizar pela regra geral, porque ela é mais forte. Então, trazer para o Código Civil uma regra especial de regime de responsabilidade seria desfazer a lógica levada ao PL 2338”, afirmou a secretária.
O PL 2.338 foi aprovado pelo Senado em 2024, mas ainda precisa ser analisado pela Câmara dos Deputados.
Fonte. Gazeta do Povo




