
- Author, Andy Verity, Tom Beal e Will Dahlgreen
- Role, Da BBC News
Integrantes de uma gangue de motociclistas dos Estados Unidos com histórico de hostilidade ao islamismo foram contratados para a segurança de locais de distribuição de ajuda em Gaza, segundo investigação da BBC News.
Dados oficiais apontam que mais de mil crianças e adultos foram mortos em meio a cenas de caos e tiros enquanto tentavam obter comida em locais de distribuição ligados à Gaza Humanitarian Foundation, uma organização humanitária privada.
A BBC News confirmou a identidade de dez integrantes do Infidels Motorcycle Club (Infiéis Motoclube, em tradução livre) que atuam em Gaza para a UG Solutions, empresa privada responsável pela proteção de locais de distribuição da Gaza Humanitarian Foundation.
Sete desses integrantes ocupam cargos de chefia nessa controversa operação de distribuição de ajuda, que conta com o apoio de Israel e do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
A UG Solutions afirmou à BBC que seus funcionários têm qualificação para o trabalho e que a seleção não considera “hobbies pessoais ou afiliações sem relação com o desempenho profissional”.
A Gaza Humanitarian Foundation, por sua vez, declarou adotar “tolerância zero a qualquer preconceito ou conduta discriminatória e odiosa”.
Cenas de caos e perigo têm sido comuns nos locais de distribuição de ajuda em Gaza desde a abertura no final de maio. Até 2 de setembro, 1.135 crianças, mulheres e homens foram mortos próximos a locais da GHF enquanto buscavam comida, segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA).
A ONU informou que a maior parte das mortes parece ter sido causada por forças de segurança israelenses. O Exército de Israel afirmou que incidentes em que civis foram feridos ao buscar ajuda estão “sob análise pelas autoridades competentes das Forças de Defesa de Israel”.
A UG Solutions negou as alegações de que seus contratados de segurança também atiraram contra civis e de que teriam colocado pessoas em busca de comida em perigo devido à liderança incompetente. A empresa, porém, admitiu que tiros de aviso foram usados para dispersar multidões.

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O Infidels MC, fundado em 2006 por militares veteranos dos Estados Unidos da guerra do Iraque, é uma gangue de motociclistas cujos integrantes se veem como “cruzados modernos” — referência aos guerreiros cristãos medievais das Cruzadas que lutaram contra muçulmanos pelo controle de Jerusalém.
A gangue divulga discursos de ódio contra muçulmanos em sua página no Facebook e já realizou um assado de porco “em desafio” ao mês sagrado do Ramadã.
“Colocar o clube de motociclistas Infidels MC como responsável pela entrega de ajuda humanitária em Gaza é como colocar a Ku Klux Klan para distribuir ajuda humanitária no Sudão. Não faz sentido algum”, disse Edward Ahmed Mitchell, vice-diretor do Council on American-Islamic Relations (CAIR), importante organização de defesa dos direitos civis muçulmanos nos EUA.
“É certo que isso levaria à violência, e é exatamente o que vimos acontecer em Gaza.”
O líder da gangue, Johnny “Taz” Mulford, ex-sargento do Exército dos EUA, foi punido por conspiração para cometer suborno, roubo e por fornecer informações falsas às autoridades militares. Atualmente, ele é o “líder da equipe nacional” da UG Solutions em Gaza, responsável pela execução do contrato da empresa na região.

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A BBC enviou um e-mail ao Infidels MC com perguntas sobre o caso. Em resposta, Johnny “Taz” Mulford orientou outros líderes da gangue a não responder, mas incluiu a BBC por ter clicado em “responder a todos”, divulgando acidentalmente endereços de e-mail e nomes de integrantes, alguns trabalhando em Gaza.
Ao cruzar esses nomes com informações públicas sobre a liderança do Infidels MC e relatos de funcionários da UG Solutions, a investigação identificou dez membros do clube recrutados por Mulford para atuar em Gaza.
Além de Mulford, três integrantes da liderança do Infidels MC ocupam cargos seniores na operação da UG Solutions na região:
- Larry “J-Rod” Jarrett, vice-presidente da gangue e responsável pela logística
- Bill “Saint” Siebe, tesoureiro nacional, que lidera a equipe de segurança de um dos quatro “locais de distribuição segura” da Gaza Humanitarian Foundation
- Richard “A-Tracker” Lofton, membro fundador e líder de equipe em outro ponto de distribuição.

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Documentos confidenciais, informações de acesso público e relatos de ex-funcionários da UG Solutions permitiram confirmar a identidade de mais seis integrantes do Infidels MC contratados para trabalhar em Gaza. Três deles ocupam cargos de liderança ou vice-liderança nas equipes de segurança armada da empresa.
Jarrett, Siebe e Lofton não responderam aos pedidos de comentário feitos pela BBC.
A UG Solutions disse à BBC que realiza verificações completas de antecedentes e só envia indivíduos previamente avaliados. No entanto, reportagens indicam que Jarrett foi preso há dois anos nos EUA por dirigir alcoolizado e já tinha uma acusação similar de cerca de dez anos atrás. Não se sabe se algum dos casos resultou em condenação.
O fundador e diretor-executivo da UG Solutions, Jameson Govoni, foi preso no início deste ano na Carolina do Norte pelo suposto envolvimento em um atropelamento com fuga e por tentar escapar da polícia, segundo documentos judiciais. Govoni, que mora nos EUA e não é membro do Infidels MC, recusou-se a comentar o caso à BBC.
Até então, Mulford era o único contratado da UG Solutions identificado como membro do Infidels. A investigação da BBC revela a extensão da contratação de integrantes da gangue, especialmente para cargos mais bem remunerados à frente das equipes de segurança armada da UG Solutions.
Postagens em redes sociais mostram que, em maio, apenas duas semanas antes de viajar a Gaza, Mulford buscava recrutar veteranos militares dos EUA que o seguem no Facebook, convidando quem “ainda sabe atirar, se mover e se comunicar” a se candidatar.

Ao todo, pelo menos 40 das cerca de 320 pessoas contratadas para trabalhar para a UG Solutions em Gaza teriam sido recrutados do Infidels MC, segundo estimativa de um ex-funcionário.
Documentos obtidos pela BBC mostram que a UG Solutions paga a cada contratado US$ 980 (cerca de R$ 5.000) por dia, incluindo despesas, valor que sobe para US$ 1.580 (cerca de R$ 8.000) por dia para líderes de equipe nos “locais de distribuição segura” da Gaza Humanitarian Foundation.
Um líder de equipe em Gaza responsável pela segurança dos locais, Josh Miller, publicou foto de um grupo de contratados com uma faixa com os dizeres “Make Gaza Great Again” (tradução livre: “Faça Gaza Grande Novamente”), em referência ao slogan trumpista “Make America Great Again”.

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Violência e ‘boné das Cruzadas’
A faixa exibe o logotipo de uma empresa de propriedade de Miller, que vende camisetas e outras roupas, incluindo uma com o slogan “embrace violence” (tradução livre: “abrace a violência”) e outra com os dizeres “Surf all day, rockets all night. Gaza summer 25” (tradução livre: “Surfe o dia todo, foguetes à noite. Verão em Gaza 2025”).
A empresa de Miller também publicou um vídeo online mostrando cenas de violência armada e defendendo o uso de armas contra supostos criminosos, com a legenda: “Remember, always shoot until they’re no longer a threat!” (tradução livre: “Lembre-se, atire sempre até que eles deixem de ser uma ameaça”).
Miller tem tatuada a palavra “Crusader” nos dedos e “1095” nos polegares. Esse é o ano em que o líder da Igreja Católica, Papa Urbano 2º, lançou a primeira Cruzada, atacando muçulmanos como uma “raça vil”.
Miller não respondeu aos pedidos de comentário feitos pela BBC.
Uma publicação na página do Infidels MC no Facebook, vendendo bonés com “1095”, afirma que o número simboliza o início das Cruzadas, “uma campanha militar das forças da Europa Ocidental para retomar Jerusalém e a Terra Santa do controle muçulmano”. A expressão “Terra Santa” refere-se à área hoje coberta em grande parte por Israel e pelos territórios palestinos.

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Johnny Mulford, que além de liderar a gangue é registrado como agente de uma empresa da Flórida chamada Infidels MC, tem a data “1095” tatuada no peito. Ele também possui uma cruz das Cruzadas tatuada no antebraço direito e outra no braço esquerdo, acompanhada da palavra “Infidels” (“Infiéis”, em tradução livre).
“Quando você vê fanáticos antimuçulmanos hoje celebrando 1095, celebrando as Cruzadas, estão comemorando o massacre em massa de muçulmanos — a eliminação de muçulmanos e judeus da cidade sagrada de Jerusalém”, disse Edward Ahmed Mitchell, da organização americana de direitos civis muçulmanos Council on American-Islamic Relations.
Mitchell afirmou que a gangue apresenta características típicas de grupos de ódio antimuçulmanos que há décadas usam o nome “Infidels” (“Infiéis”, em tradução livre).

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Visões anti-islâmicas expressas pela gangue incluem um panfleto do assado de porco durante o Ramadã encontrado pela BBC em uma página da internet arquivada. O texto dizia: “Desafiando o feriado islâmico do Ramadã… convidamos você para a festa aberta de motociclistas e assado de porco do capítulo Infidels MC Colorado Springs”.
O panfleto mostra ainda uma mulher usando uma burca rasgada do pescoço para baixo, expondo o peito.
A página do Infidels MC no Facebook tem hospedado discussões claramente islamofóbicas. Em 2020, o clube compartilhou um link de um artigo falso e satírico que afirmava que quatro políticos democratas dos EUA, dois deles muçulmanos, queriam que a Bíblia fosse considerada discurso de ódio.
Entre os comentários feitos por membros do grupo estavam: “Enchendo meu carregador ao máximo. Não seria a primeira vez que entraríamos em conflito com muçulmanos”; “Deportem essas vadias patéticas para algum país de terceiro mundo, onde não se ofendam com a Bíblia Sagrada”; e um comentário desqualificando “eles e seu Maomé” — referência ao profeta responsável pelo surgimento do islamismo — acompanhado de um palavrão.
Até a publicação desta reportagem, na quarta-feira (10/09), os comentários ainda permaneciam na página do Infidels MC no Facebook.

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O site do grupo Infidels MC também exibia o logotipo do Justiceiro, personagem violento das histórias em quadrinhos da Marvel, símbolo apropriado por grupos supremacistas brancos, inscrito com a palavra “kafir” em escrita árabe, que significa “descrente” (ou “infiel”).
Em um comunicado, a UG Solutions, com sede na Carolina do Norte, afirmou que Johnny Mulford é uma “figura confiável e respeitada”, com mais de 30 anos de experiência em apoio aos EUA e seus aliados no mundo. “Mantemos nossa confiança em sua reputação, em seu histórico e em suas contribuições para o sucesso de missões complexas”, disse a empresa.

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“Não fazemos triagem com base em hobbies ou afiliações pessoais que não estejam relacionadas ao desempenho profissional ou aos padrões de segurança. Todos os membros da equipe passam por verificações de antecedentes completas, e apenas indivíduos qualificados e avaliados são designados para as operações da UG Solutions”, afirmou a UG Solutions.
A Gaza Humanitarian Foundation afirmou que depende de “pessoas de todas as origens” para fornecer ajuda e construir confiança com os moradores locais.
“A equipe que atua nos locais da Fundação é diversificada — e é bem-sucedida por esse motivo”, disse a Gaza Humanitarian Foundation.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL