
Crédito, Getty Images
- Author, Giulia GranchiGiulia Granchi
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
O governo de São Paulo confirmou no fim de semana a segunda morte relacionada ao consumo de bebidas contendo metanol — um composto químico de uso industrial presente em solventes, combustíveis e outros produtos.
O total de notificações no Brasil chegou a 225, segundo o levantamento mais recente do Ministério da Saúde divulgado neste domingo (5/10), incluindo casos confirmados e suspeitos, além de óbitos. Até o momento, 16 casos foram confirmados e 209 estão em investigação.
O estado de São Paulo concentra a maior parte das ocorrências, com 192 notificações — cerca de 85% do total nacional. Desses registros, 14 casos foram confirmados, incluindo os dois óbitos, enquanto 178 seguem em investigação, com sete mortes sob análise.
Ainda não se sabe se o metanol foi adicionado a bebidas falsificadas (para dar mais volume e barateá-las), ou se são casos de contaminação — mas as declarações dadas pelas autoridades até o momento apontam para a primeira opção.
Segundo dados do Médicos Sem Fronteiras (MSF), estima-se que cerca de 40 mil pessoas em todo o mundo já tenham sido afetadas por intoxicação por metanol desde 1998, resultando em aproximadamente 14,4 mil mortes.
A organização ressalta, porém, que esses números são apenas estimativas, baseadas em reportagens, publicações e comunicações pessoais — e, portanto, não podem ser considerados dados oficiais ou totalmente precisos.
De acordo com o MSF, milhares de pessoas sofrem intoxicação por metanol todos os anos. Quando o tratamento não é feito a tempo, as taxas de mortalidade variam de 20% a 40%, dependendo da concentração da substância e da quantidade ingerida.
Ainda assim, a organização acredita que esses índices subestimam a gravidade real do problema já que muitos casos não são diagnosticados corretamente e vários surtos de intoxicação nunca chegam a ser identificados como envenenamento por metanol.
As estatísticas disponíveis indicam que a Ásia é a região com maior incidência de intoxicações, com surtos recorrentes em países como Indonésia, Índia, Camboja, Vietnã e Filipinas.
O levantamento do Médicos Sem Fronteiras aponta que, nos últimos 6 anos, entre 2019 e 2025, Indonésia, Índia e Rússia lideram o numero de ocorrências.
E mais recentemente, em 2025, segundo os dados, a Turquia é o país mais afetado até o momento, com grandes surtos em Istambul (235 casos) e Ancara (94 casos). No ano anterior, 2024, a Índia lidera, com 227 ocorrências Tamil Nadu e cerca de 165 em Bihar.
Por que o metanol é tão mais perigoso que o etanol, o álcool presente nas bebidas comuns?
Ambos são classificados quimicamente como álcoois e, do ponto de vista visual, são muito semelhantes: são transparentes, tem a mesma viscosidade e incluse o mesmo odor – e não é possivel distingui-los por percepção
Mas os efeitos que produzem no organismo humano são radicalmente diferentes — e essa diferença, aponta a infectologista Jessica Fernandes Ramos, explica a gravidade dos casos registrados.
“No fígado, os dois são metabolizados pela mesma enzima, mas os resultados são distintos: o etanol gera substâncias menos nocivas, enquanto o metanol é transformado em formaldeído (o formol usado para embalsamar cadáveres) e em ácido fórmico, extremamente tóxico.”
“Esse ácido é corrosivo para o nervo óptico, para estruturas do sistema nervoso e altera o pH do sangue, o que pode comprometer o metabolismo celular, afetar o funcionamento de órgãos vitais e levar a complicações graves, incluindo falência de múltiplos sistemas”, descreve Ramos, que integra o Núcleo de Infectologia do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
O metanol é rapidamente absorvido. Os primeiros sintomas podem ser sentidos de duas até 48 horas — a depender de quanto da substância foi ingerido.
“Em algumas intoxicações se usa lavagem gástrica, mas no caso do metanol isso não adianta, porque a absorção é muito rápida. Uma vez absorvido pelo trato digestivo, ele passa pelo fígado e se transforma nesses dois metabólitos tóxicos, que entram na circulação”, aponta a infectologista.
Os metabólitos, descreve Ramos, chegam rapidamente ao sistema nervoso, e as células mais vulneráveis são os neurônios.
“Por isso os primeiros sintomas são dor de cabeça intensa, alterações no nervo óptico, visão turva ou borrada, podendo evoluir para redução da acuidade visual e, nos casos mais graves, cegueira.”
O corpo também passa a produzir substâncias muito ácidas durante a digestão desse produto. Isso faz com que o sangue fique mais ácido do que deveria, uma condição chamada acidose metabólica.
Para tentar compensar, a pessoa começa a respirar de forma rápida e curta, numa tentativa de eliminar esse excesso de acidez pelo ar.
“Esse desequilíbrio afeta todas as células do corpo, mas o coração é um dos primeiros a sofrer, porque precisa de um funcionamento muito estável para manter os batimentos. O sistema respiratório também é prejudicado, já que precisa trabalhar além do normal para tentar equilibrar o organismo. Os rins, por sua vez, têm papel central nesse processo: eles tentam segurar bicarbonato (que é uma substância alcalina) para neutralizar a acidez. Mas esse esforço cobra um preço — a função de filtração fica comprometida, e o paciente pode evoluir para uma insuficiência renal.”
Essa combinação de efeitos — toxinas circulando no sangue, acidose metabólica, sobrecarga do coração, dos pulmões e dos rins — pode levar à falência múltipla de órgãos, porque cada sistema vital passa a funcionar de forma inadequada, sobrecarregando os demais e comprometendo a capacidade do corpo de manter funções essenciais.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL