Que americano adora pintar de nobreza tudo o que pode, é mais do que sabido —tem rei do pop, rei Trump, rei dos animais, realeza por todo lado. Mas ao menos uma coroação merece reverências e salamaleques: a Tríplice Coroa das Trilhas de Longa Distância, que inclui os percursos dos montes Apalaches, da Crista do Pacífico e da Divisória Continental. Juntas, somam mais de 12.000 quilômetros pelos Estados Unidos e atraem milhares de caminhantes todos os anos. Caminhantes como o mineiro de Divinópolis Jeff Santos, 54, que acaba de completar a terceira etapa da jornada.
Santos, que rejeita o rótulo de aventureiro e que conta ter começado a vida nas trilhas em 2015, trabalha com produção de eventos e botou a mochila às costas por primeira vez percorrendo o Caminho da Fé, que tem vários ramais pela serra da Mantiqueira, cruzando cidades de São Paulo e Minas Gerais, todos levando até Aparecida do Norte, no interior de São Paulo.
“Eu nunca havia sido de viajar, acampar, ir para o mato”, contou Santos à Folha, com muitas gargalhadas e ainda tentando recuperar os 12 quilos perdidos na empreitada. “Mas estava vivendo um momento de depressão e resolvi tentar a caminhada”. Quatrocentos e poucos quilômetros depois, havia tomado gosto pela coisa e foi para a Estrada Real, de Diamantina (MG) até Parati (RJ). “Aí já foram 1.200 quilômetros, e descobri que aquele negócio de trilhas era bem bacana”, admite.
Para quem tinha percorrido 1.200 quilômetros, o passo lógico seguinte era o hemisfério norte, onde a mais famosa das trilhas da Tríplice Coroa, a Apalache, oferece 3.538 quilômetros entre o monte Springer, no estado da Geórgia, e o monte Katahdin, no Maine, atravessando 14 estados da costa leste americana e percorrida por cerca de três milhões de pessoas todos os anos.
“Ali estava um desafio à altura”, diz Santos. “Mas tinha um detalhe: eu nunca havia acampado na vida, nunca havia passado uma noite sequer numa barraca e minha primeira vez foi justamente na Apalache”, diz divertido.
Foi conversando com as pessoas pelas matas e lamaçais da cordilheira Apalache, em 2017, que soube que havia duas outras trilhas para completar a tal Tríplice Coroa. De volta ao Brasil, escreveu um livro sobre sua experiência na costa leste e retornou aos EUA em 2019 para percorrer a trilha da Crista do Pacífico, com 4.260 quilômetros de extensão da fronteira do México até o Canadá, ao longo da costa do Pacífico.
À intenção de percorrer a terceira trilha, a Divisória Continental, em 2021, a vida real opôs a pandemia. Só neste ano Santos botou o pé novamente na estrada para completar o desafio.
A Divisória Continental, com 4.873 quilômetros de extensão, e considerada a mais difícil das três, liga Alberta, na fronteira do Canadá com os EUA, a Chihuahua, no México. Com menos infraestrutura que as outras, foi a que mais desafios apresentou. Não à toa seu mote é “Embrace the brutality”, ou abrace a brutalidade, em tradução livre. Sim, a coisa é bruta.
“O poder da natureza é sempre algo que assusta”, diz Santos. “Teve dois dias de caminhada por um leito de rio seco onde tinha havido um incêndio anos atrás e uma enchente neste ano, era devastação total, você não tem trilha, não sabe para onde ir, não vê ninguém por dias a fio e meio que vai se orientando por uma pedra, um tronco”, lembra.
À aridez do rio seco se seguiu uma longa tempestade de raios no deserto do Novo México. “O tempo mudou e caiu uma chuva de raios a madrugada inteira, algo ao mesmo tempo maravilhoso e assustador, raio por todo lado, podia sentir a terra tremer”, relata.
Mas tremedeira maior ele conta que sentiu ao se aproximar da fronteira do México, alvo prioritário das autoridades americanas de imigração. “Eu ficava imaginando que a qualquer momento ia aparecer um carro da ICE [a agência de controle de imigração que toca o terror por todo o país] e me levar preso, sumir comigo”, conta. Só depois de completar o trajeto e bem longe da fronteira ele se deu ao luxo de comemorar. E como foi?
“Eu dancei rindo e cantando no meio do nada!” exclama.
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Fonte.:Folha de S.Paulo


