1:45 AM
14 de novembro de 2025

João Diamante faz menu autoral na Pequena África no Rio – 13/11/2025 – Comida

João Diamante faz menu autoral na Pequena África no Rio – 13/11/2025 – Comida

PUBLICIDADE


Em vez de seguir o simples conselho de “botar água no feijão”, como exalta Chico Buarque na canção que celebra a feijoada, João Augusto Santos Batista, ainda menino, preferia incrementar suas próprias misturas. Entre uma brincadeira e outra, ele gostava de adicionar temperos especiais à vida e ao prato que sua mãe deixava congelado, armazenado em potes na geladeira.

Naqueles tempos de garoto, João já dava os primeiros sinais de sua criatividade, moldando uma habilidade que, anos mais tarde, o consagraria como chef João Diamante.

Aos 34 anos, ele comanda o restaurante Dois de Fevereiro, onde mistura elementos da comida carioca, baiana e africana, no largo de São Francisco da Prainha, zona central carioca, região que já teve praia antes dos aterros e segue como símbolo da cultura negra, conhecida como Pequena África.

O apelido, que remete ao popular chocolate ao leite com cristais de açúcar, nasceu na adolescência, bolado por um amigo, quando Diamante se dividia entre uma série de atividades: de limpa-piscina a carreteiro de feira, passando por produtor de baile funk na comunidade do Andaraí, na zona norte do Rio.

E, mesmo com dias intensos de trabalho, o espírito inquieto e a fome de novos sabores nunca o abandonaram.

Apesar de crescer em um ambiente de carências, sempre soube aproveitar os momentos de celebração. “Na casa emprestada onde a gente morava, sempre tinha vida e invencionices”, conta.

Ainda bebê, carregado nos braços da mãe, Elildes, e acompanhado pela irmã, Tamires, encarou a longa viagem de carona que os levou de Salvador ao Rio de Janeiro. Foram cinco dias de estrada.

Diamante teve que aprender desde cedo a se virar. A mãe dele saía todos os dias, antes do amanhecer, da favela para o trabalho, enquanto o garoto, com pouco mais de nove anos, já dava seus primeiros passos na cozinha, burilando pratos como lasanha e estrogonofe, além, é claro, de fazer suas misturas à lá baião de dois, receita típica do Nordeste.

O Dois de Fevereiro, data em que é celebrado o dia de Iemanjá, transpira Bahia em cada detalhe. As moquecas chegam fumegantes à mesa, acompanhadas de arroz, farofa de dendê e rodelas de banana.

O prato ganha ainda lascas de coco fresco e um buquê de coentro —marca registrada da culinária nordestina. A versão mais completa reúne camarões e peixe sai por R$ 145 (serve duas pessoas).

Na grelha, o chef Diamante mostra outro talento: ele mesmo “seca” as carnes, aplicando técnicas de maturação que intensificam sabor e textura. A picanha, por exemplo, é servida com baião de dois, aipim, queijo coalho e, naturalmente, uma generosa farofa (R$ 78).

Para finalizar, o bolo molhado de coco com sorvete de dendê, creme de milho e milho crocante sintetiza a criatividade do chef em reinterpretar os sabores da terra, equilibrando tradição e invenção em uma mesma colherada. Custa R$ 40.

O restaurante ocupa um casarão centenário de fachada discreta. As mesas se espalham pela calçada, convidando o passante a fazer uma pausa. Parte das paredes permanece sem reboco, num gesto que valoriza a rusticidade do imóvel e lhe confere charme próprio.

Outras superfícies são tomadas por desenhos que evocam Iemanjá, a rainha do mar, enquanto pequenos elementos de oferendas reforçam a presença das tradições afro-brasileiras no espaço.

Até o banheiro guarda um símbolo de reverência: um espelho que remete à orixá das águas. “Trabalho hoje para mudar e honrar a memória de nossos ancestrais”, resume o chef.

Em 2023, Diamante explorou a cozinha do Benin, na África, em uma viagem que aprofundou sua relação com as origens da culinária afro-baiana —travessia que resultou num documentário.

Não só isso, no país africano, ele visitou a Porta do Não Retorno, em Uidá, um dos maiores portos de escravidão do mundo, numa experiência, de acordo com ele, dolorosa, porém, transformadora.

O chef, que ganhou destaque após trabalhar com Alain Ducasse na França e idealizar o projeto social Diamantes na Cozinha, além de pilotar um restaurante no Museu do Amanhã, no Rio, traduz em cada prato um percurso que combina técnica, ancestralidade e vivência pessoal.

Está tudo ali: um pouco do que viu, provou e sentiu —das panelas africanas ao dendê baiano, do rigor francês à afetividade das receitas de sua terra. Cada criação é uma memória transformada em sabor, um elo entre o passado e o presente da gastronomia que o inspira.

O Dois de Fevereiro está cercado por referências que dialogam com sua própria essência. Nos arredores, a Pedra do Sal mantém viva a memória da cultura negra carioca; ali perto, um espaço celebra a escritora Conceição Evaristo, e uma estátua homenageia Mercedes Baptista (1921–2014), primeira bailarina negra do Theatro Municipal e símbolo da resistência e da herança africana no país.

“Não me vejo saindo daqui”, afirma Diamante. “Esse espaço é um lugar de pertencimento onde posso manifestar minha cultura e religiosidade”, conta o chef, reafirmando a importância do restaurante não apenas como um local de trabalho: ele é também uma extensão de sua identidade.

Ele ressalta a contribuição do produtor cultural Raphael Vidal, empreendedor responsável pela revitalização de outros pontos no largo da Prainha. “Eu só mexi na cozinha”, brinca, referindo-se ao seu papel na criação do menu e do ambiente.

“O restaurante simboliza um lugar de resistência”, diz, destacando como o espaço é um marco de afirmação cultural e valorização da culinária e das tradições que conectam Rio-Bahia, África-Brasil, com sua gente e seus sabores.

Restaurante Dois de Fevereiro

R. Sacadura Cabral, 79, largo da Prainha, tel. (21) 98886-3484



Fonte.:Folha de São Paulo

Leia mais

Rolar para cima