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13 de junho de 2025

Jornalista relata viagem de Corumbau a Porto Seguro – 11/06/2025 – Turismo

Jornalista relata viagem de Corumbau a Porto Seguro – 11/06/2025 – Turismo

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No verão de 1976, com 19 anos, fui convidada por amigos a conhecer o projeto de comunidade que estavam implantando em um pequeno terreno a 7 km ao sul do Corumbau, no litoral da Bahia, e a 78 km de Porto Seguro —que ainda não havia sido invadida pelas hordas atrás de porres movidos a muita axé music. Eram todos jovens de classe média alta, estudantes das mais diversas áreas, nenhuma delas, porém, ligada à produção agrícola. Era um grupo sonhador, que imaginava prosperar plantando alface numa terra onde só coqueiros vingavam. Mas todos se divertiam.

O pequeno lote de terra era disputado por duas grandes multinacionais vizinhas, por ser a melhor saída de suas áreas para o mar. Mas o casal idoso que ali morava, originário da etnia pataxó e cansado da pressão diuturna das duas gigantes, resolveu vendê-lo àqueles moços bonitos e bem-alimentados, com seus cabelos longos e roupas coloridas, só de birra. Não participei da vaquinha que financiou a empreitada, fui apenas de férias do meu trabalho da época, com o namorado surfista e músico Paulo Meyer, que animava as noites ao redor da fogueira e decidiu morar lá.

Após três semanas carpindo uma terra infértil, puxando rede no mar na disputa com tubarões-martelo pelo peixinho nosso de cada dia, catando sargaços (algas) para ver algo remotamente verde no prato junto ao peixe e à farinha, e acendendo o fogão a lenha todas as manhãs, resolvi que estava de bom tamanho minha experiência comunitária e disse a Meyer que iríamos a Porto Seguro —a pé, pela praia. Era uma caminhada com a qual sonhava desde que saímos de São Paulo.

A viagem, logo de cara, já havia sido uma pequena odisseia: três dias de ônibus de São Paulo ao Rio de Janeiro e de lá até Itamaraju, onde o único pouso disponível era a “casa das primas”, prostitutas que nos receberam com muita curiosidade e algumas caranguejeiras espalhadas pelo local.

No dia seguinte, pegamos carona até Cumuraxatiba —não havia linhas de ônibus para lá. Quem nos levou foi um caminhão carregado de toras. Fomos encarapitados em cima daquele monte de madeira, sacolejando por um caminho insanamente esburacado, sem qualquer sinal de asfalto. Em Cumuruxatiba, pagamos a um pescador para nos levar até a comunidade, que alguém disse chamar-se Come-quem-leva. Vai entender o motivo, ninguém sabia dizer. Mas fazia todo o sentido.

Perto da comunidade só havia uma vendinha, onde se comprava farinha, fumo de corda e licor de jurubeba. O grosso de nossa alimentação veio em uma velha caminhonete que, após dias de estradas de terra para chegar, nunca mais saiu de lá, após nos suprir de arroz integral e feijão azuki. Com farinha, peixes e os sargaços, esse era o rancho do grupo.

Saímos para Porto Seguro de manhãzinha, levando quase nada: além do biquini e um short que iam no corpo, apenas a carteira, escovas de cabelo e de dentes, uma camisa e uma saia compunham toda a minha bagagem, socada numa bolsa de franjas a tiracolo. Nos pés, uma rasteirinha de couro. Afinal, era só um passeio —de 78 km, só na ida.

Por volta do meio-dia, cruzamos pela área do Parque Nacional do Monte Pascoal, reservada aos pataxós. Interceptados por eles, explicamos que estávamos de passagem rumo a Porto Seguro. Nos serviram um almoço de frutas e beiju e seguimos viagem pela areia fofa até Caraíva, passando por um pequeno bosque onde um cidadão, armado com espingarda, cuidava para que ninguém ameaçasse o último jacarandá que dizia haver em toda a região.

Em Caraíva, nem casa de primas havia. Depois de saborearmos um delicioso mingau de fruta-pão na casa de Dona Zefa, que exibiu suspirando a foto emoldurada de sua neta sorridente (dentro do caixão onde fora velada, feito boneca em caixa de presente), nos abrigamos numa construção em ruínas à beira do rio. A longa saia hiponga serviu de saco de dormir improvisado.

No dia seguinte, encontramos o jornalista Edilson Martins, especialista em temas indígenas, que nos ofereceu uma carona no barco que alugara até Arraial d’Ajuda. Depois da longa caminhada da véspera por areia (eu já disse que era fofa?), aceitamos agradecidos. Na Ajuda, descemos a nado do barco, a caminho da casa de outros amigos que por lá andavam em busca de uma vida alternativa.

Após três dias passeando por Ajuda e Porto Seguro, resolvemos voltar, desta vez andando todo o caminho. Saímos alertados pelos moradores para o fato de que, com a maré alta, as falésias próximas a Trancoso não nos dariam passagem, era melhor ir por dentro, pelo mangue. E lá fomos nós, chafurdando na lama, enquanto eu só pensava que, naquela placa de madeira apagada pela qual passamos alguém deveria ter escrito “Saigon, 30 km”. Era como estar num filme de guerra, mas o inimigo eram os mosquitos.

Depois de todo um dia enroscados nos galhos pegajosos daquele pântano, sem parar para pensar no que poderia estar sob nossos pés, chegamos a Trancoso e ainda precisávamos subir a pirambeira de acesso à vilinha. Praticamente engatinhamos até o alto e nos deixamos despencar no meio do quadrilátero, rodeado de uma fileira única de casinhas humildes, igrejinha ao fundo. Dos dois lados, traves de futebol. Numa delas, um jegue amarrado. Um vira-lata curioso veio ver que bichos enlameados eram aqueles —nós.

Perguntamos a um morador onde poderíamos passar a noite e ele nos convidou a ficar em sua casa, desalojando os quatro filhos e nos oferecendo banho frio e um jantar de peixe com farinha “feita em casa, fresquinha”, à luz de um candeeiro, pois a eletricidade só chegaria àquelas bandas nos anos 2000. Ao amanhecer do dia seguinte, Meyer foi ajudar a puxar a rede de arrastão enquanto eu divertia a mulher tentando esmagar a mandioca brava, torcendo-a no tipiti de palha para tirar o veneno enquanto os meninos batiam em minhas pernas para espantar as muriçocas. Quando a farinha ficou pronta, minhas pernas estavam cheias de hematomas. Mas agradecemos a acolhida e seguimos caminho.

A saída de Trancoso era entremeada por uma areia monazítica, brilhante, e pedras basálticas afiadas que formavam um mosaico traiçoeiro para quem pretendia andar o mais rapidamente possível aproveitando a fresca da manhã. Era preciso ter cuidado com as lascas que ameaçavam cortar os pés, mas pisar na areia fofa era muito cansativo. Segui com os olhos fixos no chão até que, ao longe, avistei um rio.

Apertando o passo, alcancei Meyer, metros à frente, e perguntei que rio era aquele. Era o Corumbau. Mas eu não me lembrava de ter passado por Caraíva, como podia ser? Era. Eu havia andado todo um dia até o cair da tardinha, hipnotizada pelo mosaico brilhante —e pela insolação, que constatei ao entrar no rio e ver tudo escuro ao redor. Paramos à sombra da vendinha à beira da foz para esperar a leseira passar.

Sete quilômetros depois, chegamos à comunidade, para mais uma noite de música, jurubeba e algumas ervas alienígenas, que ninguém é de ferro. Dois dias mais tarde, pegamos o caminho de volta para a cidade grande. Dessa vez, sem pernoite na casa das primas.



Fonte.:Folha de S.Paulo

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