O juiz Márcio José de Moraes, que condenou a ditadura militar pelo assassinato de Vladimir Herzog, destacou o papel das mulheres no enfrentamento ao regime e na busca para que a Justiça reconhecesse os crimes cometidos no período de exceção (1964-1985).
Moraes participou de um debate na manhã desta segunda-feira (10), na Faculdade de Direito da USP, para discutir a histórica condenação, sentenciada ainda durante a ditadura. O encontro foi em memória aos 50 anos da morte de Herzog, completados em outubro deste ano, e serviu também como um ato em defesa da democracia.
Em sua fala, Moraes também cobrou a indicação de uma mulher ao STF (Supremo Tribunal Federal) diante da possível escolha de mais um homem –o advogado-geral da União, Jorge Messias– para a cadeira de Luis Roberto Barroso, aposentado desde o mês passado.
“Como se pode ter uma corte suprema, na qual se tenha a real esperança de ser um baluarte de resistência, em que não haverá um olhar feminino igualitariamente?”, questionou o juiz. Caso Messias seja indicado pelo presidente Lula (PT) e aprovado pelo Senado, a ministra Cármen Lúcia será a única mulher entre os 11 nomes da corte.
A crítica foi precedida pela lembrança de que só foi possível condenar a ditadura, ainda durante o regime de exceção, porque Clarice Herzog, viúva do jornalista, quis processar o Estado. Ele citou também o caso de Eunice Paiva, mulher do ex-deputado Rubens Paiva, na busca pelo paradeiro do marido –que havia sido torturado, morto e nunca teve o corpo encontrado.
“Houve uma tragédia nacional, indubitavelmente, com mortos e desaparecidos. Qual é a voz que repercute essa tragédia?”, perguntou, respondendo na sequência: “É a voz do feminino, é a voz da mulher que repercute as suas próprias trajetórias. Ele é a voz de Eunice, é a voz de Clarice, é a voz de Maria, é a voz do feminino”, disse ele.
Clarice foi mencionada por quase todos os presentes. Em abril de 1976, seis meses após o assassinato do marido, ela entrou com uma ação na Justiça Federal para que o governo fosse responsabilizado pela prisão, tortura e morte de Vlado, como era conhecido Herzog.
Vlado foi morto em 25 de outubro de 1975 na sede do DOI-Codi do Exército, em São Paulo, após ter sofrido intensas sessões de tortura. A ditadura divulgou que ele havia cometido suicídio e a versão foi abertamente contestada por familiares e amigos de Herzog.
Seu filho mais velho, Ivo Herzog, que preside o conselho do instituto que leva o nome do pai, dedicou o evento à mãe, Clarice.
“Como uma viúva de 34 anos consegue pensar em processar o Estado opressor dentro das quatro linhas, como se fala por aí?”, disse Ivo, usando expressão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), condenado a 27 anos de prisão por tentativa de golpe, que diz sempre ter atuado “dentro das quatro linhas da Constituição”.
Márcio Moraes tinha apenas dois meses de carreira quando, em outubro de 1978, condenou a União pelo crime contra Vlado. Ele assumiu o processo porque o juiz titular da vara onde atuava estava prestes a se aposentar e foi impedido pelo regime de seguir com o caso —a ditadura considerava que um magistrado em fim de carreira teria mais liberdade para condenar o Estado.
Aplaudido de pé no evento da USP, Moraes lembrou ter sentido medo de sofrer um atentado ao condenar a ditadura com o AI-5 (Ato Institucional nº 5, o mais duro do regime) em pleno funcionamento. O ato deixaria de ser vigente em janeiro de 1979, e mesmo aconselhado a esperar, ele optou por divulgar a sentença três meses antes, porque enxergava que a sentença “tinha que ser um brado de resistência do Poder Judiciário”.
“Eu quis ser cirúrgico, eu não ia ficar jogando pedrinha no regime, eu ia dar uma tijolada”, afirmou ele.
STF, democracia e eleições
Um dos advogados que representou Clarice no processo, Samuel MacDowell Figueiredo elogiou a sentença de Moraes, mas lamentou que ela tenha sido “cumprida apenas parcialmente”, já que determinava que os responsáveis por torturar e matar Herzog fossem identificados e responsabilizados, algo que nunca ocorreu.
Para ele, a situação se agravou quando o STF “interpretou a Lei da Anistia [de 1979] como um escudo que protegia torturadores e assassinos”.
A lei em questão concedeu perdão aos militares que cometeram crimes durante a ditadura. A revisão do texto, parada no STF há mais de dez anos, tem sido um pedido frequente de familiares de vítimas do regime, incluindo o próprio Ivo Herzog.
“A tortura por sua natureza não é um crime político, é um crime contra a dignidade humana, contra os fundamentos que o Estado eleva, contra a própria ideia de civilização”, disse MacDowell.
Mediadora do debate, a jornalista da Folha Patrícia Campos Mello ressaltou a necessidade de promover eventos que recordem o que foi o regime de exceção.
“É importante a gente nunca deixar que o revisionismo prospere, é importante a gente lembrar exatamente o que foi a ditadura militar. A gente passou perto de uma situação muito difícil de quase cair no abismo do autoritarismo recentemente e temos eleições no ano que vem em ambiente político muito conflagrado. E mais importante do que nunca, lembrar o que foi a ditadura”, afirmou ela.
Presidente da OAB-SP, Leonardo Sica criticou acusações, feitas principalmente por bolsonaristas ao atacarem decisões do STF, de que o país vive uma “ditadura da toga”.
“Não estamos vivendo nada pior do que foi a ditadura e, ao dizer isso, estamos banalizando o que foi a ditadura e que há algo se a perder [que é a democracia].”
O evento foi promovido pelo Instituto Vladimir Herzog junto da Comissão Arns, da OAB e da USP. Participaram, também, o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias; o advogado e ex-deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh; Celso Campilongo, diretor da Faculdade de Direito da USP; os historiadores Mário Sérgio Moraes e Maria Aparecida Aquino; os jornalistas Juca Kfouri e Clotilde Perez; e o jurista argentino Luis Moreno Ocampo, ex-procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional.
Fonte.:Folha de S.Paulo


