SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Marcado para começar nesta terça-feira (2), o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e dos demais réus do primeiro núcleo da trama golpista deve ter três focos principais de controvérsia jurídica, segundo especialistas.
A expectativa de advogados e professores consultados pela Folha é que o caso seja marcado por debates em torno da validade da delação premiada de Mauro Cid, da sobreposição de crimes e da caracterização de tentativa de golpe de Estado.
Bolsonaro responde no STF (Supremo Tribunal Federal) pelos crimes de tentativa de golpe de Estado, dano qualificado, organização criminosa armada, deterioração de patrimônio tombado e tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito.
O ex-presidente será julgado na Primeira Turma do tribunal, composta por cinco ministros. Até o momento, somente Luiz Fux tem dado indicativos de que pode ser um contraponto ao relator Alexandre de Moraes.
Um dos pontos que pode gerar divergência é a delação de Cid, que também vai a julgamento. O militar omitiu informações nos primeiros depoimentos e mudou de versão sobre figuras-chave no processo, como o ex-ministro Walter Braga Netto.
Dois pontos são centrais na análise da colaboração: a credibilidade e a voluntariedade. O primeiro trata do quão confiável é a palavra do delator, e o segundo, se as declarações foram prestadas por vontade própria, sem coerção.
Será a primeira vez que o colegiado do Supremo deve se debruçar efetivamente sobre a matéria. Quando recebeu a denúncia contra os acusados, a corte rejeitou pedidos das defesas para anular o acordo, mas sem aprofundar o debate.
No meio tempo, a revista Veja revelou que um perfil no Instagram atribuído a Cid teria sido usado para falar da delação, o que poderia configurar violação da cláusula de sigilo do acordo. Os diálogos, porém, também apontariam para uma possível falta de voluntariedade.
Uma falta de voluntariedade do militar poderia, como mostrou a Folha, comprometer a utilização das provas e afetar o processo, enquanto omissões ou quebras de sigilo tenderiam a atingir apenas Cid, que arrisca perder os benefícios do acordo.
Maíra Salomi, vice-presidente da Comissão de Direito Penal do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo), diz que esse é um dos temas-chave do julgamento, afinal boa parte da ação está calcada na delação, embora não só.
“Não descartaria que tivéssemos votos divergentes com relação à rigidez do acordo, seja pela nulidade, seja pela descredibilidade dos depoimentos”, diz a advogada.
Outro ponto que deve ser suscitar discussão é o enquadramento penal. Desde o início dos julgamentos sobre o 8 de Janeiro, debate-se sobre se tentativa de golpe de Estado já não presume a de abolição violenta do Estado democrático de Direito ou vice-versa.
A questão envolve o que o direito chama de consunção -quando um crime absorve o outro- e tem efeito direto na pena. A tentativa de golpe prevê reclusão de 4 a 12 anos, enquanto a de abolição do Estado de Direito vai de 4 a 8 anos.
Embora acredite que haja consunção neste caso, Alexandre Wunderlich, professor de direito penal da PUC-RS e do IDP, afirma que esta não é uma posição majoritária no STF, muito menos na Primeira Turma, onde o processo será julgado.
Ele acredita que, em vez de um crime absorver o outro, deve prevalecer no Supremo a tese de que há concurso material, ou seja, quando um réu responde por dois crimes distintos e as penas são somadas, o que leva a uma punição mais alta.
Mas, para Wunderlich, o que vai decidir o caso será encontrar os elementos da violência e grave ameaça dos quais tratam os crimes, o que dependerá da análise das provas e da avaliação individualizada da participação de cada um.
“Ele pensou, ele projetou, ele idealizou, mas ele cessou sua atividade e não concordou com a violência ou grave ameaça. Isso é um exame muito detalhado que, na minha opinião, é o que decide o caso”, afirma o professor.
Antônio José Teixeira Martins, professor de direito penal da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), acrescenta que será central fixar quando esses crimes começam a ser praticados.
De modo geral, o direito organiza o curso de um crime em fases: cogitação, preparação, execução, consumação e exaurimento. Normalmente o ato só pode ser punido a partir do início da execução até a consumação; o que acontece antes ou depois, não.
Golpe e abolição, no entanto, são crimes que falam em tentativa, o que significa dizer que há um descolamento daquelas categorias. A lei não pune o golpe ou a abolição do Estado em si, mas o perigo, afirma Teixeira Martins.
De acordo com o professor, os critérios utilizados para classificar tentativas e atos preparatórios são muito debatidos, mas, em geral, prevalece o entendimento de que é preciso conjugar elementos objetivos e subjetivos.
Ou seja, existe um bem protegido -o Estado ou o governo- e é necessário haver uma ação que o coloque em risco. Se for só uma ideia, não ultrapassa o limiar do que se poderia chamar de execução.
Bolsonaro diz que considerou alternativas, mas nada além disso. “Evidente que o estudo, cogitação e o ‘brainstorm’ de possíveis medidas legais, sob um viés analítico de sua viabilidade e submissão à lei, não pode ser tido como ato violento”, diz a defesa.
O que a PGR (Procuradoria-Geral da República) pretendeu demonstrar, e o que caberá ao STF analisar, é se os atos atribuídos ao ex-presidente e a aliados dele ultrapassaram a fronteira entre mera cogitação política e tentativa de golpe.
Fonte. Noticias ao minuto