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- Author, Daniel Gallas
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
Quem tem o poder e a competência de julgar supostos crimes cometidos por um ex-presidente da República?
Dentro do sistema judicial brasileiro, a quem cabe exatamente a tarefa de julgar um ex-presidente — uma decisão que tem repercussões enormes nos rumos do país?
A Justiça brasileira possui três instâncias hierarquizadas que representam os níveis de um julgamento.
A primeira instância é onde os processos começam. Na segunda instância, os processos são revisados por outro tribunal quando existe contestação da decisão de primeira instância por uma das partes.
Ao STF ainda cabem também os chamados julgamentos por “foro privilegiado”, reservado a altas autoridades, que é o caso de Bolsonaro agora.
A questão da competência — ou seja, de quem na Justiça deve julgar um caso — é fundamental dentro do processo. No caso de Lula e da Lava Jato, seu processo foi anulado justamente por um problema de competência, o que o livrou da prisão e abriu caminho para seu retorno político.
Lula foi condenado na primeira e na segunda instância da Justiça — e acabou solto por determinação da terceira. Já Bolsonaro está sendo julgado diretamente na terceira e última instância, por ter foro privilegiado.
E mesmo dentro do Supremo Tribunal Federal ainda existe outra questão de competência — e que está sendo criticada por Bolsonaro e sua defesa.
O STF é dividido em duas turmas — cada uma com cinco ministros. O julgamento de Bolsonaro deveria acontecer dentro de uma dessas turmas — onde bastariam três votos para condená-lo? Ou o caso deveria ser levado ao Plenário do STF — onde todos os 11 ministros votam, sendo necessários seis votos para a condenação?
O caso de Bolsonaro será julgado dentro da Primeira Turma do STF — que é presidida pelo ministro Cristiano Zanin e é composta pelos ministros Cármen Lúcia, Flávio Dino, Luiz Fux e Alexandre de Moraes.
A BBC News Brasil conversou com juristas para entender essas controvérsias sobre o julgamento de Bolsonaro.
Por que Lula foi julgado desde 1ª instância e Bolsonaro é julgado diretamente no Supremo?
Por que Lula foi julgado seguindo as três instâncias e Bolsonaro está sendo julgado diretamente no que seria a última instância de um processo?
“O caso do então ex-presidente Lula é diferente do caso do ex-presidente Bolsonaro do ponto de vista da competência, porque os supostos crimes pelos quais o Bolsonaro está sendo julgado foram cometidos quando ele era presidente da República”, explica à BBC News Brasil o advogado Renato Vieira, da Kehdi Vieira Advogados e presidente do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
Tanto Lula quanto Bolsonaro já haviam deixado o cargo quando foram indiciados. Mas no caso de Lula, o crime do qual ele fora acusado — de corrupção na compra do apartamento no Guarujá — teria ocorrido fora de seu mandato.
Já os crimes atribuídos a Bolsonaro teriam ocorrido ainda no seu mandato como presidente — já que a suposta tentativa de golpe aconteceu antes da terceira posse de Lula, em dezembro de 2022.

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“Nesse caso, nós temos incidência de uma norma constitucional que reserva a competência da Suprema Corte para esses casos, para processar ministros de Estado, seus próprios ministros, o procurador-geral da República, o presidente da República e outras autoridades.”
Essa norma é o “foro por prerrogativa de cargo” — conhecido como foro privilegiado, e que é alvo de intensos debates políticos no Brasil.
O princípio do foro privilegiado é proteger autoridades — presidentes, ministros e parlamentares, por exemplo — de abusos da Justiça que possam impedir que eles exerçam seus cargos.
Sem o foro privilegiado, em tese, qualquer juiz em primeira instância poderia aceitar uma denúncia contra um presidente — e há mais de 18 mil juízes no Brasil.
A mais recente decisão sobre foro privilegiado é de março deste ano — quando o STF concluiu o julgamento do Habeas Corpus 232.627/DF.
O Supremo decidiu que “a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício, com aplicação imediata da nova interpretação aos processos em curso”.
Foram a favor desse entendimento os ministros Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Nunes Marques e Dias Toffoli. Já André Mendonça, Luiz Fux, Edson Fachin e Cármen Lúcia foram contra.
Essa decisão consolida que Bolsonaro deve ser julgado no STF (o foro privilegiado), mesmo que já tenha deixado o cargo.
Mas nem todos concordam que o julgamento de Bolsonaro deveria acontecer no Supremo.
A advogada Maíra Beauchamp Salomi, do escritório Salomi Advocacia Criminal e vice-presidente da Comissão de Estudos de Direito Penal do Instituto dos Advogados de São Paulo, o caso de Bolsonaro deveria estar correndo desde a 1ª instância da Justiça, assim como aconteceu com Lula.
A Suprema Corte deveria ser reservada apenas para julgamentos de presidentes no cargo — como estabelece o regimento — e para análise de questões constitucionais, que é a sua prerrogativa principal.
“A Suprema Corte não tem estrutura para isso, não tem previsão legal e ela não foi feita para isso. Ela é guardiã da Constituição”, diz Salomi.
Bolsonaro tem foro privilegiado ou foro mais rigoroso?
Os juristas com quem a BBC News Brasil conversou questionam o termo “foro privilegiado” para descrever o foro por prerrogativa de cargo.
Para eles, ser julgado apenas pelo STF pode trazer desvantagens ao réu.
“Por que privilégio? É até contraditório. Talvez não seja privilégio algum, porque se esgotam as chances, por exemplo, de recursos”, afirma à BBC News Brasil o advogado Rafael Garcia Campos, que é coautor do artigo com Aquino e especialista em garantias constitucionais e prova no processo pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha).
“O então ex-presidente Lula teve a oportunidade de recorrer ao TRF [Tribunal Regional Federal, a segunda instância], ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo.”
“Então, além do juiz Sérgio Moro [o juiz de primeira instância que condenou Lula], ele teve apreciação da sua sentença por um colegiado em três tribunais: um tribunal de regional e mais dois tribunais superiores.”
Na segunda instância, Lula também foi condenado e ainda viu sua pena aumentar para 12 anos. Mas na última instância, o processo contra Lula acabou anulado.
Em 2021, o STF declarou que o juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba [a primeira instância], não tinha competência para julgar Lula.
O Supremo declarou que Moro foi parcial no julgamento e declarou sua suspeição.
Além disso, a Corte interpretou que os casos envolvendo Lula não estavam diretamente relacionados com a Petrobras, que era o foco da Operação Lava Jato julgada por Moro.
O STF decidiu que os casos do tríplex no Guarujá e também do sítio de Atibaia e outras duas ações penais envolvendo o Instituto Lula seriam de competência da Justiça Federal em Brasília e não em Curitiba.
Mas o prazo para se processar Lula na Justiça em Brasília já havia prescrito. Por isso, todos os processos contra Lula acabaram anulados, sem que houvesse condenação ou absolvição do presidente. Lula foi solto e voltou à vida política.
Os recursos em instâncias superiores — sobretudo no STF — foram fundamentais para Lula. Mas Bolsonaro não terá o mesmo caminho disponível, caso venha a ser condenado.
“No caso do presidente Bolsonaro, ele terá apenas os ministros da turma do STF. Ele terá um colegiado para julgá-lo”, diz Campos.
Quem deve julgar: primeira turma ou plenário?
Está decidido que Bolsonaro será julgado em apenas uma instância da Justiça brasileira — o STF. Mas mesmo dentro da casa, ainda há outra questão de competência.
O ex-presidente deve ser julgado apenas por uma das duas turmas? Ou seu caso deve ir ao Plenário, onde a decisão seria de todo o colegiado do Supremo?
Os juristas com quem a BBC News Brasil divergem sobre de quem seria a atribuição: do Plenário ou das Turmas, como está acontecendo agora.
Para os advogados Renato Vieira, Mariane de Matos Aquino e Rafael Garcia Campos, o julgamento de ex-presidentes no Plenário está previsto em lei.
O artigo 5 do regimento interno do STF (redigido em 2023) afirma que “compete ao Plenário processar e julgar originariamente nos crimes comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente da República, o Presidente do Senado Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República”.
Já o artigo 9 do mesmo regimento fala que é competência das Turmas julgar deputados e senadores, assim como ex-ocupantes desses cargos.
Vieira afirma que houve uma interpretação confusa por parte do STF de emendas recentes que acabaram levando o julgamento de Bolsonaro à Primeira Turma.
O problema é que o regimento fala apenas sobre quem deve julgar presidentes, senadores e deputados — mas não trata especificamente de ex-presidentes.
“Vivemos uma confusão dessas interpretações, porque houve de 2014 para cá três emendas regimentais que alteraram a competência do Pleno versus a competência das Turmas”, diz Vieira.
Segundo ele, o objetivo de se julgar em Turmas é dar maior rapidez aos processos, já que o excesso de casos julgados no Plenário estaria atravancando a pauta dos ministros.
“A interpretação que foi dada a elas, equivocada, foi para privilegiar a celeridade, porque o Supremo não pode parar por conta de um julgamento. E tudo isso faz muito sentido mesmo. Basta lembrarmos do escândalo do Mensalão, que demorou muito.”
“Faz sentido, mas a solução para isso não passa por, no decorrer de uma investigação e de uma apuração, você retirar [a competência] do órgão plenário que até já apreciou casos com magnitude muito menor do que este.”
“Eu não tenho a menor dúvida de que esse caso deveria ser julgado dentro do Plenário”, diz Vieira.
“Houve de fato um equívoco”, afirma Campos. “O regimento o trata como presidente da República. Ele está sendo considerado presidente da República — e isso atraiu o foro por prerrogativa de função. Se não fosse isso, ele nem estaria ali. Ele estaria sendo julgado na primeira instância.”

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Mas a advogada Maíra Beauchamp Salomi acredita que o julgamento pode ocorrer dentro da Primeira Turma.
“Vamos lembrar como chegaram ao Supremo os casos do 8 de janeiro. Tem um artigo específico do Código Penal que permite que casos conexos a ações penais originárias sejam julgadas pelo mesmo órgão competente.”
“No [caso dos protestos de] 8 de janeiro de 2023, os primeiros casos envolvendo financiadores [dos movimentos], incluindo deputados que foram denunciados, foram julgados pela Primeira Turma. E isso puxou a conexão com todos os demais casos.”
Foi assim que pessoas sem foro privilegiado acabaram sendo julgadas e condenadas pela Primeira Turma do STF. O caso de Bolsonaro também chegou à Primeira Turma por essa via.
Salomi diz que o relator Alexandre de Moraes tem o poder de enviar casos como o de Bolsonaro da Primeira Turma para o Plenário se quiser. Mas Moraes não quis fazer isso, e teve sua decisão chancelada pela própria turma.
“Olhando o regimento interno, as ações penais originárias devem sim ser julgadas pelas turmas.”
Por essa interpretação, nem interessaria a discussão sobre Bolsonaro tem foro privilegiado ou não. Seu caso acabaria analisado diretamente pelo STF pela conexão com as ações penais do 8 de janeiro.
Sobre o artigo 5 do regimento, a advogada afirma que a lei não é taxativa sobre ex-presidentes serem julgados no Plenário — pois menciona apenas presidentes que ainda estão ocupando o cargo.
A defesa de Bolsonaro criticou o fato de seu julgamento estar acontecendo na Primeira Turma, e não no Plenário.
Bolsonaristas acusam o foro de ser “carimbado” — por ser composto por quatro ministros indicados por presidentes petistas: Cármen Lúcia, Luiz Fux, Cristiano Zanin e Flavio Dino, sendo que esses dois últimos foram advogado e ministro de Lula, respectivamente. O quinto juiz da Turma é Alexandre de Moraes.
Os dois ministros do STF indicados por Bolsonaro — Nunes Marques e André Mendonça — estão na outra turma e não votarão no processo de Bolsonaro. Eles só fariam parte do julgamento se o caso fosse julgado no Plenário.
“Preservar o foro por um motivo ‘carimbado’, mas negar o julgamento pelo órgão competente, é transformar a Constituição e o regimento em um self-service institucional: escolhe-se o que serve ao objetivo político do momento e descarta-se o que poderia garantir um julgamento minimamente justo”, disse Bolsonaro em março deste ano.
Para Campos, no STF existe um histórico de ministros votarem de forma independente no passado, sem relação a quem os indicou para os cargos — inclusive de ministros indicados por governos do PT contra o partido.
E segundo o advogado, os próprios ataques de bolsonaristas ao STF e a ministros da Corte acabam fortalecendo a união dos juízes em torno das decisões da Justiça.
“Alguns personagens da direita passaram a atacar a Corte de forma pública muitas vezes sem motivo, criando fantasmas. E você acaba vendo nisso uma união dos ministros em torno das decisões que vai além da posição de esquerda ou direita”, diz Campos.
Se condenado, Bolsonaro ainda pode recorrer?
Caso Bolsonaro venha a ser condenado na Primeira Turma do STF, ele poderia ao menos recorrer ao Plenário?
A hipótese só existe se houver os chamados embargos infringentes. Esse mecanismo é possível quando existe uma estreita maioria para se condenar um réu.
No caso de Bolsonaro, seria necessário que dois dos cinco juízes da Primeira Turma votassem para absolvê-lo dos crimes que está sendo acusado. O placar do julgamento precisaria ser 3 votos contra Bolsonaro e 2 a favor.
Nesse caso, a defesa de Bolsonaro entraria com o pedido dos embargos infringentes e seu caso passaria a ser analisado pelo Plenário da Suprema Corte.
Na prática, o julgamento seria reiniciado — mas desta vez com participação de todos os 11 ministros da Corte.
Vieira explica que isso não é exatamente um recurso — porque a instância da Justiça não mudou. Tudo ainda está dentro do âmbito da terceira instância. Mas na prática, ela dá uma nova chance ao réu de reverter uma condenação.
Outro caminho, considerado mais remoto pelos juristas ouvidos pela BBC News Brasil, é um habeas corpus — um pedido contra casos de prisões consideradas abusivas ou sem fundamento.
Mas esse caminho seria mais difícil por conta de uma súmula do STF (606) que estipula que não cabe habeas corpus contra ato de ministro da Corte.
Em caso de condenação no STF, as possibilidades de recurso de Bolsonaro dentro do Brasil se esgotariam. A alternativa legal de Bolsonaro seria recorrer a órgãos internacionais contra a Justiça do Brasil.
Revisões do julgamento no futuro?
Como existe divergência de juristas sobre diversas questões relacionadas à competência — Primeira Turma ou Plenário, foro privilegiado ou justiça comum — será que existe um risco de no futuro o resultado do julgamento de Bolsonaro (absolvição ou condenação) vir a ser contestado ou até mesmo derrubado?
O próprio STF poderia no futuro — com uma composição diferente de juízes — chegar à conclusão que houve algum vício no processo de Bolsonaro, invalidando qualquer decisão.
Afinal, a questão da competência já provocou a anulação do processo contra Lula.
“Eu acredito que sim. Nossa jurisprudência ela é muito instável, sobretudo da Suprema Corte. Muitas vezes a mesma composição do Supremo dá várias interpretações diferentes aos mesmos dispositivos legais e constitucionais”, diz Salomi.
Mas para ela, como a decisão está sendo tomada pela própria Corte mais alta do país e o colegiado mais graduado, é mais difícil que exista alguma revisão mais profunda da decisão tomada agora.
Os juristas ouvidos pela BBC News Brasil também destacam as condições excepcionais que cercam o julgamento de Bolsonaro.
Segundo eles, a Justiça brasileira está sob ataque institucional — seja por políticos no país, seja por países estrangeiros, como no caso das sanções da Lei Magnitsky e do tarifaço do governo de Donald Trump.
Ainda que não concordem com todas as decisões do STF, os especialistas consideram legítimas muitas ações da Corte.
“O Supremo mais acertou do que errou. Temos que ter uma visão um pouco sistêmica”, diz Salomi.
“Não podemos nos esquecer que tudo isso é uma briga institucional. Se o Supremo não corre, nós estamos vendo o que está acontecendo no Congresso com a PEC da Blindagem correndo agora. Tivemos tarifaço, estamos tendo a pressão de uma grande potência atacando os nossos ministros. E isso é inequívoco.”
“O Supremo fica em uma situação muito delicada entre seguir esse processo da maneira adequada, cautelosa, de modo a não trazer uma excepcionalidade para o caso. Mas ele também não pode relaxar em relação ao julgamento, porque nós temos ataques de outras ordens.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL