
Crédito, EVARISTO SA / AFP
- Author, Vitor TavaresVitor Tavares
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
A investida do presidente dos EUA, Donald Trump, para influenciar o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro permitiu ao governo Lula disputar contra o bolsonarismo de forma inédita as simbologias associadas ao patriotismo, recolocando o presidente numa “melhor posição de largada” para as eleições de 2026.
Essa é a avaliação do cientista político Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do instituto de pesquisas Ipespe e professor colaborador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Enquanto há a expectativa no mundo político de que o presidente americano volte a aplicar sanções contra o Brasil e membros do governo e do Supremo Tribunal Federal (STF) caso Bolsonaro seja condenado por tentativa de golpe de Estado, Lavareda avalia que, caso sejam confirmadas, as medidas podem reforçar a imagem do governo como defensor da pauta do orgulho nacional.
“Do ponto de vista meramente político, com o efeito que desperta na população, a capacidade de mobilizar solidariedade e reforçar a coalizão tecnicamente chamada de around the flag, em torno da bandeira nacional, do símbolo, é óbvio que o governo Lula é beneficiado”, opina.
Na última sexta-feira, numa ampliação desse discurso, o governo federal lançou um novo slogan: “Governo do Brasil – Do lado do povo brasileiro”, no lugar de “União e Reconstrução”, adotado no início do atual mandato de Lula.
Na ocasião, o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Sidônio Palmeira, disse: “Agora, vivemos uma nova fase, em que o nosso país, nossa economia e conquistas da população vivem ameaças externas.”
A nova marca já está sendo usada em peças publicitárias e de comunicação institucional.
Mas Lavareda pondera que, caso uma eventual nova ofensiva de Trump afete de forma significativa a economia brasileira, o ganho do governo Lula pode ser anulado — ainda mais que a percepção da população sobre a situação econômica já é negativa, mesmo com dados positivos sobre desemprego, por exemplo.
“Isso vai exigir que o governo faça o esforço de persuasão a respeito do desempenho econômico do país, porque apenas as estatísticas oficiais não são capazes de criar esse tipo de sentimento [positivo] na população”, diz.
Especialista em comportamento eleitoral e marketing político, Lavareda também avalia que o caminho da direita para escolher o sucessor político de Bolsonaro para as eleições de 2026 está completamente indefinido, já que caberá exclusivamente ao ex-presidente decidir como e quando tomar sua decisão.
“Às vezes, algumas análises apressadas subestimam, no eleitorado de direita, o tamanho que o ex-presidente mantém”, diz.
A última pesquisa do Ipespe, de Lavareda, sobre quem os eleitores de direita consideram como sua maior liderança, coloca Bolsonaro como “líder inconteste” desse campo político.
Para 67%, Bolsonaro segue sendo a grande liderança da direita, seguido pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), com 16%, e pelos governadores Ratinho Júnior (PSD), do Paraná, e Romeu Zema (Novo), de Minas, com 3% cada.
“A direita quer chegar ao Natal com a sucessão de 2026 resolvida. Mas Bolsonaro não tem pressa”, resume Lavareda.

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Para o cientista político, o ex-presidente segue aguardando “fatos novos”, inclusive mais ofensiva dos EUA, para decidir a quem (e se) passa o bastão.
Parlamentares de partidos do Centrão e o governador Tarcísio de Freitas trabalham por um acordo para anistiar o ex-presidente logo após o fim do julgamento do STF.
Tarcísio inclusive chegou a dizer que seu “primeiro ato” numa eventual Presidência seria conceder uma anistia a Bolsonaro.
Segundo a avaliação de Lavareda, tudo isso mostra que o julgamento em andamento no STF é só uma “partida” no embate entre bolsonaristas e o Judiciário.
“E as disputas de cada round vão ser resolvidas por pontos, não vai haver nocaute”, diz.
Uma dessas partidas será neste 7 de Setembro, no domingo, quando estão previstos atos de bolsonaristas em defesa da anistia ao ex-presidente.
Para Lavareda, a depender do tamanho do ato, será possível visualizar “a quantas anda hoje na sociedade o potencial de mobilização dessa causa”.
Leia abaixo os principais trechos editados da entrevista com Lavareda:
BBC News Brasil – O julgamento da tentativa de golpe já está tendo toda a atenção do país. Na sua avaliação, ele enfraquece a figura política de Bolsonaro ou, ao contrário, trará um fortalecimento da base bolsonarista, em torno do discurso de perseguição?
Antonio Lavareda – À primeira vista, as sessões do julgamento, da forma como vêm se desdobrando, resultam em mais desgaste para a imagem do ex-presidente, o fragilizando politicamente.
Não houve uma posição articulada das defesas que lhes conferisse alguma unidade de posicionamento. Desse modo, a narrativa sobre a “trama golpista” não foi refutada em uníssono.
A maioria dos acusados reconheceu a tentativa de ruptura da ordem democrática, com cada um deles apenas ressalvando a sua inocência individual.
Quando você olha as pesquisas a respeito [do processo contra Bolsonaro] de vários institutos, você vê o seguinte: uma maioria da opinião pública, 55%, achou justa a prisão domiciliar de Bolsonaro, e 39% acharam injusta a prisão, segundo a pesquisa Quaest de agosto.
No final de julho, uma pesquisa do Ipespe, a Pulso Brasil, que é uma pesquisa bimestral, perguntava se as medidas cautelares impostas então ao ex-presidente Bolsonaro eram leves, adequadas, exageradas ou descabidas. 54% classificaram como leves ou adequadas, 43% como exageradas ou descabidas.
Óbvio que o julgamento é outra coisa, mas é inegável que há uma certa conexão de atitudes e opiniões entre uma coisa e outra.
BBC News Brasil – Bolsonaro já entrou nesse julgamento como inelegível, por outras razões que já foram determinadas anteriormente. Isso quer dizer que a direita já precisa de um novo nome para as eleições de 2026. Na sua avaliação, o que o julgamento traz de novo nessa corrida eleitoral da direita?
Lavareda –Vai depender muito das escolhas do ex-presidente Bolsonaro.
Às vezes, algumas análises apressadas subestimam, no eleitorado de direita, o tamanho que o ex-presidente mantém.
A mesma pesquisa do Ipespe, a Pulso Brasil do final de julho, perguntava aos eleitores quem era o maior líder da direita do ponto de vista da representação das opiniões e dos valores desse segmento do eleitorado.
Bolsonaro foi mencionado por 67% como a grande liderança do setor. O segundo colocado, governador Tarcísio de Freitas (de São Paulo), veio com apenas 16%.
Por que digo isso? O ex-presidente Bolsonaro se mantém como líder inconteste desse segmento. É ele que detém o bastão da condução desse processo.
E não é por nada. O Brasil construiu na Nova República duas lideranças carismáticas. Primeiro, foi o presidente Lula. O segundo, que apareceu no século 21, foi Bolsonaro.
É muito difícil imaginar que o país supere líderes carismáticos desse tamanho, mesmo em episódios difíceis. Lula, por exemplo, enfrentou o processo da acusação pelo petrolão, o julgamento, a prisão, etc., e emergiu como a grande força no espectro à esquerda.
A Bolsonaro estão colocadas três opções. Ele pode apoiar o nome de um candidato da direita, um dos governadores, sendo o mais cotado, preferido da chamada Faria Lima, o governador Tarcísio.
A segunda opção é escolher o nome de um familiar seu. Ele conta com dois filhos em condições de sucedê-lo, o deputado Eduardo e o senador Flávio, e conta ainda com a sua esposa, Michelle.
Ou ele pode, numa terceira alternativa que se abra, apoiar seu próprio nome. Ou seja, insistir na candidatura e manter essa candidatura até o momento do registro das chapas, seguindo uma estratégia utilizada pelo presidente Lula em 2018.
Então, essa candidatura da direita passa pelo ex-presidente Bolsonaro. Agora, qual será o caminho que ele escolherá nós vamos ver mais adiante.
BBC News Brasil – O senhor vê como possível um cenário em que a direita se divida nas eleições de 2026, isto é, venha com dois ou três candidatos? Ou a direita está caminhando para tentar encontrar um nome de acordo?
Lavareda – É possível que outros nomes da direita se apresentem, mas de forma independente e não como ungido e como escolhidos por Bolsonaro. Candidato associado à marca Bolsonaro só haverá um.
Eu acho muito difícil que a direita não apresente mais de um nome nesta eleição. Se fosse o próprio Bolsonaro, essa eleição certamente contaria no ano que vem basicamente com dois candidatos. Mas sem poder disputar porque ele está inelegível, é muito difícil que esse campo consiga se organizar em torno de apenas uma candidatura.
BBC News Brasil – Na sua visão, Bolsonaro está esperando o resultado desse julgamento para decidir? Ou seja, se ele vai ser condenado ou não, e como vai ser o próprio desempenho da sua defesa e dos ministros do STF?
Lavareda – Acho que ele está esperando para tomar uma decisão. Embora o resultado do julgamento em linhas gerais já seja uma aposta consensual entre analistas e, ao que parece, até entre os defensores do próprio ex-presidente, acho que ele está dando tempo ao tempo e esperando fatos novos.
Também precisamos lembrar que tem outro ingrediente nesse julgamento.
Quando as pessoas dizem que é o julgamento do século, é verdade. É a primeira vez que um ex-presidente é julgado e mais ainda, um conjunto de pessoas que foram autoridades do governo anterior e alguns generais das Forças Armadas.
Mas também é a primeira vez que você tem um julgamento contando com o acompanhamento ativo — porque a qualquer momento poderá se pronunciar eventualmente com sanções, com nova medida contra o Brasil —, de um presidente da maior nação do mundo, dos Estados Unidos.
Isso confere esse grau de excepcionalidade para o significado desse julgamento.
Então, diante de tudo isso, o ex-presidente Bolsonaro pode estar esperando para escolher qual o melhor caminho, porque, a rigor, ele não tem essa urgência.
Quem tem urgência são os outros pré-candidatos, que têm problema de desincompatibilização lá em abril. Todos querem chegar ao Natal com essa equação da sucessão de 2026 resolvida. O ex-presidente, eu diria, é o único que não tem pressa.

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BBC News Brasil – Já que tocou nesse assunto, vamos tratar do fator Trump. O governo Lula, desde que Trump anunciou o tarifaço, tem adotado um tom mais nacionalista, investindo na narrativa de que é um governo que defende o interesse e a soberania nacional. Visto que o Brasil pode ser alvo de novas sanções dos Estados Unidos com esse julgamento, o senhor avalia que Lula pode sair beneficiado?
Lavareda – É uma assertiva que precisa levar em conta vários aspectos.
Do ponto de vista meramente político, com o efeito que desperta na população, a capacidade de mobilizar solidariedade e reforçar a coalizão tecnicamente chamada de around the flag, em torno da bandeira nacional, do símbolo, é óbvio que o governo Lula é beneficiado.
A ofensiva do Trump já facultou ao governo, por exemplo, de certa forma tomar ou disputar no campo bolsonarista todas as simbologias associadas ao patriotismo.
Esse discurso entre aspas ‘patriota’, que era um monopólio da direita nos últimos tempos, foi no mínimo bastante disputado hoje pelo governo Lula também.
A maioria nítida da opinião pública rechaça as investidas de Trump sobre o Brasil.
Toda vez que o Trump der um passo adiante contra o Brasil, vai ampliar essa coalizão ‘around the flag‘, a coalizão em torno da bandeira, fortalecendo o presidente.
Mas precisamos estar atentos também para o fato de que o presidente norte-americano, pelo que se vê, não tem limites. E essas ações podem, de certa forma, prejudicar cada vez mais a economia brasileira e isso terminar sendo danoso para o país.
Então tem essas duas dimensões. Do ponto de vista político eleitoral, a curto médio prazo, pode ser positivo, mas se for danoso para a economia do país e se arranhar muito mais do que o tarifaço arranhou até agora, se ferir com contundência a economia nacional, isso pode se tornar negativo para o governo, porque, uma vez que seja negativo para o país, inexoravelmente será negativo também para o governo.
BBC News Brasil – Mas olhando no cenário hoje, na sua visão, Lula se cacifa como o favorito à reeleição ou o escolhido de Bolsonaro nesse momento é a opção favorita para 2026?
Lavareda – Olha, 60 dias atrás, antes de Trump, Lula era um provável derrotado em 2026, basta recuperar todos os prognósticos feitos e o clima predominante entre os partidos e as lideranças de oposição.
A combinação desses eventos trouxe o Lula de volta ao grid de largada numa melhor posição em relação a 2026.
O agregador que nós do Ipespe Analítica fazemos, no mês de agosto, apontou o presidente Lula com 47% de aprovação versus 51% de desaprovação. Ainda é um saldo negativo, mas é o melhor saldo desse ano de 2025 — por volta de março e abril, o saldo negativo era de 12 pontos percentuais.
Então você imagina o quanto o governo melhorou. Hoje, com esse percentual, o incumbente é largamente competitivo, mas ainda não chegou àquele patamar de 50 pontos de aprovação, que conferiria a ele a condição de favorito.
Nós temos um ano pela frente e temos a questão da economia. A economia tem tido um desempenho objetivamente melhor do que a percepção que a população tem da economia.
Isso vai exigir que o governo faça o esforço de persuasão a respeito do desempenho econômico do país, porque apenas as estatísticas oficiais não são capazes de criar esse tipo de sentimento [positivo] na população.
Há uma estrada aberta de possibilidades. E o fator Trump, que vai estar provavelmente presente ao longo de toda esta jornada que nos levará às eleições de 2026.
BBC News Brasil – A política externa normalmente não é um tema que costuma dominar o debate eleitoral brasileiro, não fica na boca do povo nas rodas de conversa. Com Trump, isso muda? Teremos uma eleição em que a política externa vai ter um protagonismo inédito aqui no Brasil?
Lavareda – Olha, já está tendo. As eleições de 2026 de fato já começaram. Então, nesta conjuntura político-eleitoral, há esse fato absolutamente extraordinário para nós da presença ostensiva do presidente norte-americano.
Isso nunca ocorreu, mesmo quando presidentes americanos interferiram no processo brasileiro e isso foi descoberto com a revelação de documentos oficiais dos Estados Unidos.
O presidente John F. Kennedy cogitava a interferência no Brasil. O presidente Lyndon Johnson despachou uma flotilha para o litoral brasileiro para eventualmente desempenhar um papel quando do golpe militar de 1964.
Mas tudo isso era feito de forma mais discreta possível. Nenhum deles deu declarações tão diretas em relação ao processo político brasileiro e às instituições brasileiras.
Isso vai estar conosco no ano que vem. De hoje e até o ano que vem, com absoluta certeza os eleitores nos domicílios, no local de trabalho, nos bares, vão estar discutindo não exatamente política externa no sentido geral, vão estar discutindo Trump, o significado da interferência de Trump e se o papel de Trump é descabido, se o Brasil deve reagir com mais contundência.

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BBC News Brasil – Nos últimos dias, todos os grandes jornais americanos estão falando sobre o julgamento de Bolsonaro, inclusive o colocando em suas capas e num tom de ‘Brasil ensinando os Estados Unidos’. Isso, na sua avaliação, é um sinal que o assunto Brasil vai seguir preocupando Trump?
Lavareda – Não só a imprensa dos EUA, mas do mundo todo. Isso será mais um motivo para o Trump não poder ignorar o julgamento. Várias análises internacionais chegam a citar o julgamento como um enfrentamento entre o governo brasileiro e Trump.
E, a partir destas análises, provavelmente o presidente norte-americano se sentirá provocado a reagir ao andamento e reagir aos resultados desse julgamento. No meu entendimento, é quase certo, uma vez que todos os prognósticos apontam na direção de uma condenação ao ex-presidente Bolsonaro.
BBC News Brasil – A base bolsonarista segue muito forte no Congresso e já está buscando se fortalecer para 2026, principalmente no Senado, que é onde se poderia votar, por exemplo, impeachment de ministros do STF. Isso sinaliza que, além do julgamento de Bolsonaro, a gente vai ter ainda vários rounds dessa disputa entre bolsonaristas e STF?
Lavareda – Com certeza. O julgamento de Bolsonaro encerra uma fase de um processo específico que corre no terreno da Justiça, mas não encerra o processo político.
E Bolsonaro continuará a ter centralidade nesse processo. Dada a força da direita brasileira do ponto de vista político e eleitoral e o peso que ela tem no Congresso Nacional, é óbvio que essa relação conflituosa com o Judiciário vai continuar.
A expressão “mais rounds” é absolutamente cabível. E as disputas de cada round vão ser resolvidas por pontos, não vai haver nocaute.
Pensemos apenas no PL (partido de Bolsonaro). Se o PL repetir o desempenho que teve na última eleição senatorial em 2022, que foi uma eleição uninominal (com uma vaga apenas para senador), o PL terá 24 senadores, perto de um terço do Senado.
Se somarmos a isso a nova federação União Progressista, eventuais senadores do Novo, mesmo do MDB ou PSD mais ligados à corrente bolsonarista, podemos ter no Senado o elemento que seria capaz de desestabilizar essa relação entre os poderes que já anda longe de ser harmoniosa. Poderia ganhar uma voltagem que traria ainda mais instabilidade à nossa democracia.
Ou seja, o julgamento de Bolsonaro é apenas um momento da partida. Longe de vermos o encerramento da partida.
BBC News Brasil – Paralelamente ao julgamento, o Congresso já avança na proposta de anistia. Visto que as pesquisas têm demonstrado que a maioria da população concorda com as medidas contra o ex-presidente, o que leva a classe política a insistir nessa proposta? O que esse avanço no Congresso mostra sobre a força do bolsonarismo?
Lavareda – Na verdade, o tema da anistia ganhou tração ao ser capturado pelas estratégias eleitorais de 2026.
Está em jogo o apoio do ex-presidente e de seus filhos, condicionado pela demonstração explícita de compromisso com o projeto capaz de lhe resgatar a liberdade, mesmo sem recuperar sua elegibilidade.
Aguardemos as manifestações programadas para o 7 de setembro para avaliarmos a quantas anda hoje na sociedade o potencial de mobilização dessa causa.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL