
A decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) que determinou a remoção da publicação em que o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) chama o PT de “Partido dos Traficantes” sinaliza adesão à jurisprudência criada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A adoção do entendimento coloca a democracia em risco, segundo especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo.
A Constituição prevê em seu artigo 53 que deputados e senadores são “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Isso significa que os parlamentares não podem ser responsabilizados por opiniões, em qualquer lugar que estejam, um direito previsto pelo legislador após o fim da ditadura para garantir a liberdade de expressão de autoridades eleitas pelo povo e para evitar perseguição política.
Mesmo assim, na decisão contra Nikolas Ferreira, o juiz Wagner Pessoa Vieira, do TJDFT, afirma que as manifestações do deputado estariam protegidas pela imunidade parlamentar apenas quando feitas no âmbito da Câmara dos Deputados. Segundo ele, esse direito se estenderia a ambientes virtuais apenas quando as declarações estiverem “estritamente vinculadas ao exercício do mandato”.
O magistrado também cita o STF ao destacar que a jurisprudência da Corte afirma que a imunidade parlamentar “não pode ser utilizada como escudo para a prática de atividades ilícitas ou para a disseminação de discursos de ódio e informações falsas”.
Esse argumento usado pela Corte levou não apenas à remoção de publicações, mas ao bloqueio de redes sociais inteiras de parlamentares, o que é ainda mais grave, sendo classificada como censura prévia. Um levantamento feito pela Gazeta do Povo mostrou que, ao menos, 13 deputados e senadores sofreram bloqueio de redes sociais desde 2019.
Judiciário “legisla” ao definir o que é desinformação e discurso de ódio
“A expressão ‘Partido dos Traficantes’ é evidentemente hiperbólica. Seria impossível formatar um partido político no Brasil a partir dessa linguagem. É uma crítica dura, claramente hiperbólica, que faz parte do jogo retórico”, avalia Jamil Assis, diretor de Relações Institucionais do Instituto Sivis, think-thank criado para fortalecer valores da democracia.
Para ele, o grande risco está em delegar ao Judiciário o papel de definir o que é ironia ou exagero. “A democracia exige que a palavra política tenha espaço, mesmo quando hiperbólica, enfática e dura. Sem esse espaço, congelamos o debate público e criamos uma neutralidade artificial e sanitizada”, acrescenta.
Pedro Moreira, doutor em Filosofia do Direito, destaca que resposta do PT deveria se dar no âmbito político e não através do Judiciário. “O local adequado para a defesa do partido que comanda, hoje, o Executivo Federal é a arena política, é a resposta por meio dos próprios políticos do partido, da base aliada e da militância organizada.” Ele acrescenta, que no entanto, há uma “instrumentalização do Judiciário para a resolução de conflitos que – justos ou injustos, vulgares ou invulgares – são próprios do terreno conflituoso e caótico da política”.
O mesmo TJDFT, em 2018, concluiu que manifestações de repúdio contra parlamentares em redes sociais não deveriam gerar indenizações, ainda que o conteúdo tivesse palavras duras e de baixo calão. Na ocasião, o tribunal rejeitou uma ação movida pelo deputado federal Alberto Fraga (PL-DF) contra usuários que o chamaram de “miliciano”.
A decisão reafirma o princípio da liberdade de expressão, assegurado a todos os cidadãos. Um direito que deve ser ainda mais resguardado no caso de parlamentares, que têm como missão institucional representar os interesses da população por meio da palavra.
“Imunidade parlamentar serve para proteger o exagero”, aponta jurista
Segundo os especialistas, manifestações políticas duras fazem parte do exercício legítimo da democracia e são protegidas pela Constituição. “Parece-me evidente que a chacota feita pelo deputado Nikolas Ferreira tem relação com o exercício do mandato. Aliás, qualquer cidadão deveria ter o direito de fazer uma associação como essa, independentemente de ideologia ou adesão a partido político. E esse direito deveria ser ainda mais protegido no caso dos parlamentares”, argumenta Moreira.
A visão do jurista segue a linha da decisão do TJDFT em 2018 que possibilitava os cidadãos de criticarem duramente parlamentares. O novo padrão adotado pelo Judiciário, no entanto, vai na contramão da legislação brasileira sobre a liberdade de expressão.
Casos em que tribunais de instâncias inferiores obrigam parlamentares a apagar conteúdo têm se multiplicado. O deputado federal Filipe Barros (PL-PR) foi obrigado a remover publicações por decisão da Justiça do Paraná, em 2020. Barros havia chamado uma promotora do estado de “desequilibrada” ao comentar a notícia-crome apresentada por ela contra o parlamentar.
Também em 2020, o Tribunal de Justiça de São Paulo obrigou o deputado federal Otoni de Paula (MDB-RJ) a apagar uma publicação em que chamava o ministro Alexandre de Moraes, do STF, de “lixo, tirano e canalha”. Em 2023, o Supremo abriu uma nova ação contra o deputado por difamação, injúria e coação, com base no mesmo conteúdo.
“Chamar o Alexandre de Moraes de ‘tirano’ pode ser um exagero, mas a imunidade existe precisamente para proteger o exagero. Não seria necessária imunidade alguma se o parlamento fosse um ambiente sereno, de linguagem amena e politicamente correta”, destaca Moreira.
O jurista aponta que um parlamentar não estaria protegido se, por exemplo, chamasse de “canalha” um vizinho por motivo pessoal, mas pode se manifestar dessa forma contra uma autoridade pública no calor do debate público.
Censura a parlamentares compromete escolhas políticas conscientes
“A liberdade de expressão não é para promover um discurso que é ilegal. Ela protege a crítica, mesmo que tenha excessos e seja incômoda, mas não protege aquilo que é ilegal: ameaça direta de violência explícita, incitação a crimes, divulgação de questões pessoais sensíveis”, exemplifica Assis.
Para ele, esse cenário de censura a discursos políticos também impede o eleitor de conhecer verdadeiramente o que pensam os candidatos, especialmente com as eleições gerais se aproximando. “Em uma democracia é importante haver essa discordância fática. Cortar esse tipo de discurso político não limita apenas o parlamentar, mas também o eleitor que perde o acesso a parte das ideias de em quem vai votar”, avalia.
Fonte. Gazeta do Povo


