O colapso da ditadura militar, em 15 de março de 1985, e o fim da censura, oficializada com a Constituição de 1988, tiveram um óbvio impacto na produção de novelas. Três folhetins marcantes, fazendo inúmeras referências à situação política, econômica e social do Brasil, foram levados ao ar na esteira do incipiente processo de redemocratização do país.
“Vale Tudo”, “O Salvador da Pátria” e “Que Rei Sou Eu?” foram exibidas proximamente ao longo de 1988 e 1989. Não por acaso, o período de exibição dessas tramas de forte conteúdo político antecede a realização, em 15 de novembro de 1989, de eleições diretas para presidente, as primeiras desde 1960.
O que causou mais controvérsia, na época, foi a representação de Sassá Mutema, o boia-fria simplório e analfabeto, vivido por Lima Duarte, que se elege prefeito da fictícia Tangará, na trama de Lauro Cesar Muniz. Em inúmeras entrevistas, o autor afirmou que o governo teria pressionado a Globo a mudar a história e alterar o perfil do personagem.
“Em 1989, já não havia mais a censura formal, mas houve uma interferência direta de Brasília na cúpula da Globo. Era o primeiro ano de eleições diretas, Lula contra Collor, e acharam que o Sassá Mutema fazia apologia à esquerda. Assim, acabou vindo uma pressão na emissora para que a trama fosse mudada”, disse ele à Folha em 2002.
Um livro recém-lançado, “Que Rei Sou Eu? Política e novela no Brasil” (Topbooks, 150 págs.), busca jogar luz sobre o impacto da comédia de Cassiano Gabus Mendes, a “obra mais original da história das novelas brasileiras”, segundo o autor, Bruno Filippo.
Diretor artístico da Tupi na primeira década de vida da emissora, Gabus Mendes, como observou Boni em sua autobiografia, “deu a partida, praticamente sozinho, na televisão brasileira”, em 1950. No final da década de 1960, teve a ideia da novela “Beto Rockfeller”, escrita por Bráulio Pedroso, que revolucionou o gênero. Na Globo, a partir dos anos 1970, escreveu inúmeras comédias de sucesso para o horário das 19h.
“Que Rei Sou Eu?”, rejeitada pela direção da Globo duas vezes, foi aprovada em 1989. Ambientada no reino de Avilan, entre 1876 e 1879, na verdade descreve o Brasil às vésperas das eleições.
O reino é um lugar em que campeiam a corrupção, as injustiças sociais, uma moeda desvalorizada e muitos impostos. Os principais personagens aludem a figuras conhecidas, como o então presidente José Sarney e os ministros Dílson Funaro e Antônio Carlos Magalhães, entre outros. O herói redentor, o líder da revolução, é o jovem Jean-Pierre, vivido por Edson Celulari, que descobre ser filho bastardo do falecido rei e passa a lutar pela coroa que lhe pertence.
A grande originalidade de Gabus Mendes, segundo Filippo, foi ter deixado em segundo plano o melodrama e o sentimentalismo para enfatizar “a conscientização política das mazelas do país”. O autor, um homem de centro-esquerda, segundo o filho Tato Gabus Mendes, só não previu que o então candidato à Presidência Fernando Collor seria visto como a encarnação de Jean-Pierre. “O reino de Avilan declarou guerra à minha candidatura”, protestou Collor em programa eleitoral, em 27 de setembro de 1989.
A novela terminou no dia 15 de setembro, dois meses antes da eleição. Para espanto geral, a Globo decidiu reprisá-la, numa versão compacta, entre 23 de outubro e 29 de dezembro. “Conheça os marajás do reino de Avilan”, anunciou a emissora ao divulgar a reprise em uma sessão vespertina.
Boni diz a Filippo que a ideia da reprise foi sua, assim como a autoria da chamada, mas nega ter havido intenção de ajudar Collor.
“Viva o Brasil!”, grita Jean-Pierre no capítulo final.
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Fonte.:Folha de S.Paulo