No original, em inglês, o livro de receitas mais recente do chef anglo-israelense Yotam Ottolenghi se chama “Comfort”.
A edição brasileira optou pelo título “Nostalgia”, provavelmente porque a expressão “comfort food” não tem uma tradução consagrada em português (comida reconfortante? comida afetiva?).
Uma explicação possível para esse suposto lapso vocabular consta no próprio livro de Ottolenghi, na introdução de sua receita de rigatoni ao ragu bianco. Basta substituir “italiano” por “brasileiro”: “Pergunte a um italiano o que é comida reconfortante para ele; não estranhe se ele não fizer ideia do que você está falando. ‘Toda comida é reconfortante’, provavelmente será a resposta.”
Com mais de cem receitas que celebram a comida reconfortante, afetiva ou nostálgica —mas sobretudo aquela feita em casa—, a obra é escrita a oito mãos, com as coautoras Helen Goh, Tara Wigley e Verena Lochmuller.
Apesar de não comentar sobre política, Ottolenghi se manifestou recentemente em suas redes sociais sobre os ataques de Israel à Faixa de Gaza. Pediu o fim imediato do conflito e o acesso irrestrito a ajuda humanitária para os civis. “Falo como alguém com laços profundos com a região, com família em Israel e com uma crença profunda na humanidade de todas as pessoas, palestinos e israelenses. A comida nunca deveria ser uma ferramenta de guerra. Ela deveria ser uma ponte”, escreveu.
O autor fala sobre autenticidade na comida e dá sugestões a quem quer provar novos sabores.
O sentimento de nostalgia pode tanto ser coletivo quanto individual. Como o livro aborda isso?
A ideia inicial do livro não era ser sobre nostalgia, mas sobre como eu e Helen [Goh] sentíamos falta da comida de casa em turnês de livros. Queríamos fazer uma obra sobre as comidas do dia a dia que nos conectam a nossos lares passados e presentes.
Com Tara e Verena, o conceito evoluiu para nostalgia e conforto: momentos que moldam nosso paladar e o prazer de sabores conhecidos. Percebemos que, embora as experiências sejam pessoais —o que eu comia em Israel é diferente do que Helen comia na Malásia—, há pontos em comum: arroz, alho, cozimento lento, frango.
Há duas receitas de homus no livro, uma mais tradicional e outra menos ortodoxa. Por quê?
Cada receita tem sua história particular. O homus é um bom exemplo. Eu era purista: grão-de-bico, tahine, cominho, limão, alho. Rejeitava variações. Com o tempo, e talvez a idade, tornei-me mais tolerante. Entendi que homus pode significar coisas diferentes. Helen, por exemplo, não cresceu com homus, mas tem formação clássica. Ela criou um homus com erva-doce e pimentões assados, uma vibe mediterrânea francesa. Colocamos as duas versões lado a lado, mostrando a riqueza das experiências, não uma única “autenticidade”, que é um conceito falho.
Qual é a sua visão sobre autenticidade na comida?
É um campo minado. Você pode destruir uma receita sendo inautêntico. Lembro-me de ter visto sushis com cream cheese na Nova Zelândia e pensado: “Por quê?” Mas eu mesmo faço isso. O melhor exemplo é a receita de bolonhesa da Helen, um molho chinês para pappardelle. Nancy Silverton, uma chef americana com forte influência italiana, brincou que não me perdoava por chamar aquilo de bolonhesa, porque leva pasta de pimenta fermentada, anis-estrelado, coentro —um perfil de sabor totalmente diferente.
Expliquei que usei a palavra “bolonhesa” para criar uma associação imediata nas pessoas, algo que “pappardelle com molho de carne chinês” não faria. Coloquei-o ao lado da bolonhesa mais purista do meu pai. O objetivo era esse. Não há certo ou errado absoluto; cada caso é um caso. É preciso ter cuidado, mas também liberdade para brincar.
Não acho que essa seja a abordagem correta. O que mais me preocupa é a cacofonia, porque o paradigma muda constantemente. O vilão costumava ser gordura, depois ela foi legitimada, depois foram certos açúcares, e esses são agora os vilões.
Se você teve uma dieta relativamente boa e equilibrada com seus pais, na casa em que cresceu, tem um bom exemplo de como comer. Você deveria apenas seguir isso, porque a “ordem do dia” muda o tempo todo. Sou contra ultraprocessados, acho que são muito ruins e tento não dá-los aos meus filhos. Mas não podemos ignorar que ingredientes processados, usados com moderação e consciência, fazem parte da vida e podem trazer prazer. O importante é buscar o equilíbrio.
Como convencer as pessoas a comer mais vegetais, principalmente em culturas alimentares que enfatizam muito a carne?
O melhor que se pode fazer é mostrar quão deliciosos vegetais e legumes podem ser, tornando-os atraentes e centrais na refeição. Assim, gradualmente, as pessoas podem comer menos carne.
A ideia de vegetarianismo ou veganismo universal e imediato não é realista. Nos meus restaurantes e livros, a maioria das receitas é rica em vegetais, incorporando carnes e peixes. É uma abordagem mais pragmática. Em “Nostalgia”, mostramos que vegetais cozidos lentamente, como vagens com azeite e tomate, concentram sabor e oferecem uma sensação profunda de conforto.
Que conselho você daria a quem tem receio de provar sabores mais ousados?
Comece com pequenas doses. Com meus filhos, por exemplo, introduzo sabores como anchova acrescentando-a em molhos, gradualmente, sem que eles saibam que ela está lá. Com o tempo, o paladar vai se acostumando.
Como o conceito de comida reconfortante muda de uma cultura para outra, na sua opinião?
O conforto não vem só do que se come, mas do fato de ter sido preparado por você ou por alguém querido. Uma tigela de macarrão feita por um amigo nunca será igual à de uma rede de restaurantes. Para mim, comida reconfortante é quase por definição a comida feita em casa.
Fonte.:Folha de São Paulo