
Crédito, Acervo Luis Fernando Verissimo
- Author, Luiz Antônio Araujo
- Role, De Porto Alegre para a BBC News Brasil
“Integrante da esquerda festiva”, de “linha esquerdista e contestatória”, “colabora (…) em vários jornais e tabloides da ‘imprensa nanica’, toda ela de caráter subversivo e grandemente difundida no meio universitário”.
Relatórios e dossiês conservados pelo Arquivo Nacional, muitos deles com o carimbo de “confidencial”, mostram que o regime militar mantinha vigilância cerrada sobre Verissimo.
No mais antigo documento da série, um encaminhamento (espécie de informe sobre um indivíduo ou um tema) da agência de Porto Alegre do Serviço Nacional de Informações (SNI) à Agência Central do órgão, em Brasília, o então colunista do jornal Folha da Manhã, da capital gaúcha, é descrito em termos depreciativos.
“Luis Fernando Verissimo é filho do escritor gaúcho Érico Veríssimo, à sombra do qual se projetou. Possui coluna garantida no jornal Folha da Manhã, da Companhia Jornalística Caldas Júnior, que o promove e lhe garante o público. Suas crônicas, embora inteligentes, refletem as irreflexões, o menosprezo à sociedade e os inconformismos sociais próprios de sua pouca idade”, afirma o texto.
Quando o texto foi redigido, em 7 de agosto de 1970, Verissimo estava prestes a completar 34 anos.
O documento prossegue: “Filia-se ideologicamente às ‘esquerdas festivas’ às quais festeja, com seu humor e suas ironias.”
E conclui: “É um ‘marxista’ em potencial. Porta-se de modo admirável à campanha de descrédito que grupos ligados à oposição movem ao governo e a seus atos, procurando-os desacreditar e desmoralizar.”
Em seguida, o agente expõe o que qualifica de “análise” das crônicas do vigiado: “Mesclado entre crônicas que vão do time de futebol do E. C. Internacional, seu diretor Aldo Dias Rosa até o seu gordo técnico Daltro Menezes”.
“O nome do clube se prestou às ligações que estabelece do conceito em que o Brasil é visto no exterior. Ao descontentamento lavrado no seio da torcida deste clube, estradula com a insinuação de agentes infiltrados que devem ser confinados a supostas e insinuadas maneiras de proceder do governo.”
A “mensagem”, ressalta o agente, é clara: “Ridicularizar o regime.”

Crédito, Luiz Antônio Araujo
O informe do SNI lista também “pontos fortes” e “pontos fracos” de Verissimo.
“Pontos fortes: serve-se da aceitação ampla do futebol para usá-lo como veículo da sua mensagem. Utiliza-se da técnica de lançar a notícia em pílulas. Pontos fracos: sem consistência. Não alicercia suas ironias.”
Num relatório da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça, de 27 de março de 1972, Verissimo é citado apenas como “o filho do escritor Érico Veríssimo”.
Ao abordar a influência da imprensa na atitude dos gaúchos em relação ao regime militar, o anônimo autor do documento escreve: “No jornal vespertino ‘A Folha da Tarde’, o filho do escritor Érico Veríssimo costuma censurar em suas charges, de forma áspera o governo e o Ato Institucional nº 5.”
Em 29 palavras, o texto acumula dois erros: o endereço profissional do vigiado e o nome do jornal (Folha da Tarde), quando ele na verdade assinava coluna na Folha da Manhã, outro diário da Companhia Jornalística Caldas Júnior.
O jornalista e escritor Márcio Pinheiro, autor de Rato de Redação: Sig e a História do Pasquim (Matrix, 2022), diz que, sob o regime militar, censura, vigilância e coerção atingiram todos os humoristas, embora em graus distintos.
“O humor era muito perseguido porque era a melhor forma de se dizer o que se pensava”, sustenta ele.
Ainda assim, observa Pinheiro, Verissimo imprimiu a sua produção uma marca própria, que o distinguiu de outros humoristas.
“Uma das grandes virtudes, que também era um grande talento dele, foi não fazer um humor agressivo”, opina o escritor.
“Quando se observa certas charges de Millôr Fernandes e Henfil, nota-se claramente que eles queriam cutucar o regime com vara curta”, diz Pinheiro.
Verissimo, por sua vez, tinha um estilo refinado e, por vezes, polido e delicado, na opinião do jornalista.
“Isso permitia-lhe, por exemplo, relacionar futebol e política”, raciocina ele.
Em 3 de setembro de 1975, um documento chama atenção para a repercussão, na imprensa de Porto Alegre, de uma série de escândalos recentes de corrupção.
“Luis Fernando Verissimo, na sua coluna da FM [Folha da Manhã] do dia 30 de agosto de 1975 publicou o seguinte diálogo:
‘P: Sr. Corrup Telles, como é que você ainda está solto?
R: Por um sofisma legal! Sou corrupto há muitos anos. Corrupto dos bons. E a Lei sabia disto. Mas por distração nunca me pegou! Claro que não pode me pegar agora. Seria uma confissão que, no passado, ela tinha se omitido. Mas eu prometi às autoridades que me regeneraria e me regenerei. Por um bom dinheiro, claro.'”

Crédito, Marcos Oliveira/ ALRS/ divulgação
Pequenos jornais de oposição na mira dos agentes
Além dos grandes jornais, a ditadura prestava também atenção à extensa colaboração de Verissimo com pequenos jornais de oposição, apelidados de “imprensa alternativa” ou “nanica”.
Um informe confidencial de 14 de novembro de 1975 da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul analisou o jornal mensal Risco, da L&PM Editores, fundada no ano anterior e que publicaria algumas das mais célebres obras de Verissimo.
“Já no 1º número está inserida uma reportagem de Luis Fernando Verissimo, filho de Érico Veríssimo”, diz o texto.
“O jornal em epígrafe [Risco] provavelmente será transformado em quinzenal, quer porque este tipo de pasquim seja muito aceito entre os estudantes, quer porque tenha como colaboradores profissionais conhecidos, quer porque atenda os interesses políticos da oposição”, complementa o documento.
Ao concluir, adverte: “Ao que tudo indica reuniu-se ali a maior concentração de comunistas, esquerdistas e anarquistas que se encontram em ação no jornalismo gaúcho.”
Além de Verissimo, outro colaborador do Risco citado no informe é o artista gráfico Edgar Vasques.
“Edgar Vasques, criador de Rango, também excluído da Folha da Manhã, colaborador do Risco, já teve três livros editados por L&PM Editores, tais publicações são marcadamente esquerdistas, tecendo, mesmo, ataques e críticas diretas ao Governo Revolucionário”, afirma o autor do relatório.
Em 1976, a revista IstoÉ contratou Verissimo como colunista, em uma jogada que ajudou a impulsionar as vendas da publicação no Rio Grande do Sul.
Um documento de 3 de junho daquele ano registra: “A nova revista IstoÉ tem como chefe de redação o sr. Mino Carta, ex-diretor de redação da revista Veja, e tem como colaboradores os seguintes escritores de tendências esquerdistas: Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo e Plínio Marcos.”
Responsável pela passagem de Verissimo pela IstoÉ, o jornalista Mino Carta (1932-2025) morreu no dia 2 de setembro, em São Paulo, aos 91 anos.
Em alguns casos, a vigilância produziu registros que, pela banalidade e irrelevância, parecem saídos de uma das crônicas de Verissimo.
Um exemplo é o informe da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça, de 28 de novembro de 1977, sobre uma charge publicada por Verissimo no jornal Zero Hora.
Sob o título Semelhança, a charge mostra um interlocutor anônimo dizendo a outro:
“O time do Internacional parece o atual ministério”.
“Como?”, pergunta o segundo.
“Esforçado, meio desentrosado, com pouca torcida”, desabafa o primeiro.
“E quem aparece mais é o Falcão.”
Num comentário sobre a charge, o Ministério da Justiça afirma: “A pretexto de criticar a má fase vivida pelo ‘Esporte Clube Internacional’, de Porto Alegre/RS, procura ridicularizar a atuação dos Ministérios do atual Governo e, de modo particular, a pessoa do Ministro da Justiça.”
O titular da pasta da Justiça, Armando Falcão, tinha em 1977 o mesmo sobrenome da estrela em ascensão no Internacional, o meia Paulo Roberto Falcão.
Os dois — ministro e jogador — não tinham qualquer parentesco.

Crédito, Divulgação
Eram escrutinadas até mesmo produções para o mercado publicitário, no qual Verissimo trabalhou por muitos anos.
É o caso da Informação nº 749, da Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI), de 20 de junho de 1977.
O documento trata de uma nota divulgada pela assessoria de comunicação da Rhodia do Brasil, que atua na indústria química e têxtil, a respeito da omissão do nome de Verissimo como criador de uma peça promocional para a empresa.
“É interessante notar que o marginado [Verissimo], em suas crônicas, na base do humorismo, faz constantes críticas ao Governo e ao regime brasileiro mas não se acanha de trabalhar para uma multinacional [Rhodia]”, diz o informe, que não tem o autor identificado.
O jornalista e escritor Rafael Guimaraens, que começou a trabalhar em redações em 1976, afirma que repressão, censura e oficialismo dos grandes veículos tolhiam o trabalho de repórteres e redações depois da edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968.
“Os grandes jornais reproduziam o discurso da ditadura. Havia, obviamente, jornalistas que faziam trabalho digno, mas os jornais, em si, eram oficialistas”, opina ele.
A missão de informar com correção e qualidade ficou, assim, nas mãos da imprensa nanica.
Companheiro de Verissimo na Folha da Manhã e também alvo da vigilância oficial, Edgar Vasques não se recorda de testemunhar o amigo preocupado com o cerco do regime.
Diferentemente de Verissimo, Vasques teve de responder a inquérito e processo instaurado pela Polícia Federal depois que autoridades do regime determinaram a apreensão de uma edição inteira do jornal Pasquim em razão de uma charge de Rango, no ano de 1976.
“Éramos suspeitos de denegrir a imagem do Brasil no exterior a serviço de potência estrangeira”, lembra ele.
“Os caras achavam que [a influência] era a China ou a União Soviética, mas Jaguar [editor do Pasquim na época] dizia que era Uganda”, diverte-se Vasques.
Jaguar também morreu recentemente, no dia 24 de agosto, aos 93 anos.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL