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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobe ao púlpito da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) na próxima terça-feira (23/8) para fazer, pela décima vez, o discurso de abertura do evento — uma tradição diplomática que o Brasil cumpre desde os anos 1950.
Neste ano, porém, o pano de fundo da participação brasileira é mais delicado. Lula chega ao principal palco mundial das relações internacionais em meio ao que especialistas classificam como a pior crise diplomática com os Estados Unidos em 201 anos de história.
Isso acontece após o presidente norte-americano, Donald Trump, ter anunciado tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, imposto sanções a ministro do governo Lula e do Supremo Tribunal Federal (STF) como Alexandre de Moraes e vincular as medidas ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pela Corte.
Apesar da pressão americana, Lula deu diversas declarações afirmando que não aceitava negociar o fim das tarifas ao fim do julgamento de Bolsonaro.
O que veio foi uma chantagem inaceitável, em forma de ameaças às instituições brasileiras, e com informações falsas sobre o comércio entre o Brasil e os Estados Unidos”, disse Lula em pronunciamento de rádio e TV em julho deste ano.
O tarifaço marcou o ápice das tensões nas relações entre as duas maiores democracias das Américas e deixou evidente a falta de interlocução entre os dois presidentes. Em entrevista à BBC News Brasil na semana passada, Lula admitiu não ter relação alguma com o presidente do anfitrião americano.
“Eu não tenho nenhuma relação com o Trump”, disse.
Além disso, o secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, disse em entrevista que o país estudava novas sanções ao Brasil após a condenação de Bolsonaro a 27 anos de prisão pelo STF por crimes como golpe de Estado e tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito.
E na esteira das tensões com Trump, há pouco mais de um mês, o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte, Mark Rutte, disse que o Brasil poderia ser alvo de sanções adicionais por conta da compra de combustíveis da Rússia sob o argumento de que isso beneficiaria a Rússia do presidente Vladimir Putin.
Além disso, o país vem sendo criticado por analistas pelo aparente aprofundamento das suas relações com países não-democráticos como a China e Irã.
É neste contexto que a BBC News Brasil procurou especialistas para responder a uma pergunta: Lula chega à Assembleia Geral da ONU isolado pela ausência de uma relação direta com o governo Trump ou fortalecido por ter resistido à pressão americana e tentando ampliar suas alianças?
Segundo eles, o atual estágio das relações entre o Brasil e os Estados Unidos, de fato, causam preocupação e podem levar à impressão de que Lula esteja, de alguma forma isolado.
Por outro lado, eles avaliam que, apesar de Lula não repetir o protagonismo internacional de seus dois primeiros mandatos, Lula chega à Assembleia Geral da ONU deste ano apresentando um leque de alianças e parcerias diversificado, com relacionamentos aprofundados tanto com potências do chamado Ocidente, como a França, quanto com países como a China.
Um ano depois e o ‘fator Trump’
Doze meses depois da sua última passagem por Nova York, o cenário diplomático mudou drasticamente para o mundo e para o Brasil.
Em setembro de 2024, quando Lula esteve na cidade para a Assembleia Geral da ONU, o presidente dos Estados Unidos ainda era o democrata Joe Biden, com quem o brasileiro tinha boa relação.
A campanha eleitoral no país estava a pleno vapor e Lula aproveitou a proximidade com os democratas para declarar apoio à então vice-presidente Kamala Harris, que disputava com o cargo com Trump.
Trump venceu e, apesar de Lula ter sido um dos primeiros chefes-de-Estado a parabenizar o republicano, isso parece não ter sido suficiente para ganhar a simpatia do presidente norte-americano.
Até hoje, os dois nunca se encontraram pessoalmente ou sequer trocaram um telefonema.
No fim de de novembro daquele ano, já com a notícia da vitória de Trump, Lula recebeu os líderes do G20, grupo das 20 maiores economias do mundo, no Rio de Janeiro.
O evento havia sido o maior investimento do Brasil no campo internacional neste terceiro mandato de Lula até então. Aproveitando os últimos dias de seu mandato, Biden participou do evento e se encontrou com Lula, encerrando, ao menos até agora, as boas relações entre os dois países.
Já nos bastidores do G20, interlocutores do presidente comentavam em caráter reservado o temor de que a vitória do republicano poderia representar desafios internacionais em função do estilo e das agendas políticas de Trump representada no slogan: “Fazer a América Grande de Novo” (no inglês, Make America Great Again).
Já naquele momento, o mote entre os auxiliares mais próximos de Lula era: diversificar parcerias para diminuir a dependência em relação aos Estados Unidos.
Lula deu prosseguimento à sua agenda internacional e, em maio deste ano, o presidente participou da comemoração do 80º aniversário da vitória soviética na Segunda Guerra Mundial, em Moscou, ao lado do presidente Vladimir Putin, criticado por países como os Estados Unidos e pela União Europeia por conta da invasão à Ucrânia, iniciada em 2022.
Lula foi criticado na ocasião por, supostamente, tomar parte em uma manifestação de poder do líder russo em meio ao maior conflito armado da Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Naquela mesma semana, o petista seguiu viagem para a China, maior parceiro comercial do país, onde fez sua segunda visita oficial ao país neste terceiro mandato.
Pouco depois, em junho, ele fez uma visita oficial à França, liderada pelo presidente François Macron, num evidente aceno ao Ocidente.
Em outra demonstração de proximidade com o Ocidente, Lula participou, no início de junho, como convidado, da cúpula de líderes do G7, grupo que reúne Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Itália, França, Alemanha e Japão.
Havia a expectativa de que o brasileiro pudesse estar no mesmo lugar que Trump pela primeira vez, mas isso não aconteceu porque Trump deixou o local do evento, no Canadá, de forma antecipada.
Poucos dias depois, no início de junho, Lula recebeu os líderes dos Brics, grupo de 11 economias emergentes que inclui o Brasil, China, Índia, Rússia e países como o Irã e Arábia Saudita.
O grupo vinha sendo criticado pela administração Trump por supostamente desafiar o papel de liderança global dos Estados Unidos no mundo.
E no último dia do evento, Trump disparou ameaças ao grupo.
“Qualquer país que se aliar às políticas antiamericanas do Brics será cobrado com uma tarifa adicional de 10%. Não haverá exceções a essa política”, disse o norte-americano em suas redes sociais.
O ápice das tensões entre os dois países aconteceu logo depois, no final de julho, quando Trump anunciou, o “tarifaço”.
Nas semanas que se seguiram, Lula manteve conversas por telefone com uma série de líderes mundiais, entre eles o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, com Vladimir Putin, da Rússia, e o chanceler alemão, Friedrich Merz.
As tarifas de até 50% impostas pelos EUA sobre produtos brasileiros foram classificadas pelo Palácio do Planalto como “chantagem e interferência na soberania nacional”.
Lula respondeu dizendo que, se as tarifas fossem aplicadas, o Brasil acionaria a recém-aprovada Lei da Reciprocidade Comercial e apresentaria queixa formal na Organização Mundial do Comércio.
O efeito imediato foi a queda nas exportações de setores estratégicos como carne, café e suco de laranja, enquanto em Brasília a retaliação passou a incluir também a ameaça de restringir investimentos norte-americanos no país e rever acordos de propriedade intelectual.
As tensões transbordaram da área comercial para a diplomática: vistos de familiares de autoridades brasileiras começaram a ser revogados, entre eles o da filha do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que chegou a cancelar sua ida à Assembleia Geral da ONU. A crise se agravou com a aplicação da Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes e, mais recentemente, nesta segunda-feira (22/9), contra sua esposa, Viviane Barci de Moraes.
A lei se tornou uma das ferramentas mais duras da política externa americana, permitindo congelar bens, bloquear transações financeiras e restringir a entrada em território norte-americano de estrangeiros acusados de corrupção ou violações de direitos humanos.
Brasil em ‘posição confortável’ na ONU
Para a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Carolina Pedroso, o fator Trump influencia a forma como a posição de Lula é percebida no cenário externo.
“Essa imagem de isolamento se deve à ausência de uma relação mais fluida com os Estados Unidos”, afirmou, destacando que o estágio atual das relações está diretamente ligado à personalidade de ambos os líderes. Ainda assim, ela ressalta que Lula não chega à Assembleia Geral da ONU isolado, já que mantém uma política externa ativa, com alianças nos Brics e o fortalecimento dos laços com países como a França.
Na mesma linha, Paulo Velasco, professor de política internacional da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), observa que o Brasil segue sendo visto como um ator relevante e participativo nos espaços multilaterais.
“Pelo contrário, o Brasil é tradicionalmente reconhecido como um ator confortável e ativo nesses fóruns. Tirando o curto período do governo Bolsonaro, em que houve críticas ao multilateralismo, o país sempre demonstrou apreço e convergência em relação a esse tema”, afirmou.
Para ele, o maior constrangimento no momento vem justamente da relação conturbada com o anfitrião do encontro.
Mas, como apontam analistas, a hostilidade bilateral não deverá apagar o ambiente receptivo que o Brasil costuma encontrar no palco da ONU.
“É um ambiente que não nos é hostil. Pelo contrário, um ambiente onde o Brasil se sente confortável, fortalecido, muito familiar. O Brasil tem, de fato, alguns discursos históricos de abertura na Assembleia Geral”, afirma Paulo Velasco, professor de política internacional da Uerj. Para ele, dentro da ONU, o Brasil não enfrentará isolamento.
Em caráter reservado, interlocutores do governo afirmaram haver pelo menos 30 pedidos de reuniões bilaterais com Lula durante sua permanência em Nova York. Ele volta ao Brasil na quarta-feira (24/8).
O governo não divulgou a lista dos supostos 30 pedidos, mas entre eles estaria um pedido feito pelo presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.
O presidente Volodymyr Zelensky deseja um novo encontro com Lula, o que representaria a segunda reunião bilateral entre ambos desde o início do atual mandato do brasileiro. O primeiro diálogo ocorreu em setembro de 2023, também às margens da Assembleia da ONU.
Desde então, houve uma série de desencontro e troca mútua de farpas sobre a posiçāo do Brasil em relaçāo à guerra na Ucrânia: em maio do ano passado, na cúpula do G7 em Hiroshima, a reunião não aconteceu e cada lado atribuiu ao outro a responsabilidade; já em 2024, uma tentativa na reuniāo de cúpula do G7 no Canadá não avançou por incompatibilidade de agendas.
Segundo interlocutores da delegação brasileira, ainda não há confirmação de que a reunião ocorrerá, mas o governo sinaliza interesse em que ela aconteça, tanto pela relevância internacional do tema quanto para reduzir o desgaste causado pelos desencontros anteriores.
Até o momento, as duas únicas reuniões bilaterais com lideranças internacionais já confirmadas serão com o secretário-geral da ONU, António Guterres, e com o Rei Carl XIV Gustaf e a Rainha Sílvia do Reino da Suécia, na segunda-feira (22/8). Lula também teve um encontro nesta segunda-feira (22/9), com o diretor-Executivo da TikTok, Shou Zi Chew.

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Expectativas positivas
Velasco destaca que o Brasil “tem se movido bem, dialogado com importantes atores europeus” e que há expectativa de avanços concretos nesta semana.
“Existe a expectativa de que ocorra finalmente a aprovação do acordo na União Europeia e tivemos a assinatura do acordo do Mercosul com o EFTA, também composto por países europeus.”. EFTA é a sigla em inglês para Associação Europeia de Comércio Livre, composta pela Noruega, Suíça, Liechtenstein e Islândia.
Embora a Assembleia Geral não seja tradicionalmente o espaço onde acordos são formalizados, o professor avalia que as conversas laterais podem servir de impulso político. “Então, certamente veremos ali um papo do Lula com as lideranças europeias, com a própria Ursula von der Leyen, e isso pode ajudar. Tivemos há alguns dias um telefonema do Lula com o Olaf Scholz, o chanceler alemão, os dois falando da expectativa de que o acordo possa ser aprovado finalmente até o final do ano. Então, sim, acho que a Assembleia Geral permite esses encontros bilaterais.”
Segundo ele, muito depende da agenda de reuniões já organizada, mas os momentos informais também têm peso. “Isso começa a ser feito geralmente algumas semanas antes do início da Assembleia Geral. Mas, em um encontro aqui e ali num corredor, para um café… Pode haver algum tipo de papo que ajude.”
Ele lembra que o Brasil tem se mostrado ativo também no Sul Global, seja à frente do Brics ou do G20.
“Eu não vejo o Brasil numa postura de isolamento. Pelo contrário, eu acho que o Brasil chega numa postura de visibilidade internacional, pela COP30, pela presidência do G20 no ano passado, pela presidência do Brics este ano. O Brasil consegue dialogar bem, não só com o Sul Global, mas também com atores do Norte Global. O único ponto de constrangimento é esse momento muito ruim, muito ruim mesmo na relação com os Estados Unidos. Talvez seja o pior momento na relação bilateral dos últimos 60 anos, desde o golpe militar.”
Segundo Velasco, apesar disso, “quando você pensa na ONU, na Assembleia Geral em si, acho que o Brasil vai conseguir transitar com muita familiaridade e de forma confortável.”
No campo diplomático, um gesto recente reforça a distância com Washington. Ao contrário do que aconteceu no ano passado, quando Brasil e Espanha organizaram às margens da Assembleia uma reunião sobre democracia que contou com os Estados Unidos, desta vez os norte-americanos ficaram de fora.
O encontro, que acontece na próxima quarta-feira (24) em Nova York, será conduzido por Lula e pelo primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez e contará ainda com o patrocínio de Chile, Colômbia e Uruguai. À exceção dos EUA, todos os países convidados em 2024 voltaram a receber convites.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL