
Crédito, AFP
- Author, Lucy Williamson
- Role, Da BBC News em Jerusalém
Sem câmaras frias nem laboratório de DNA, a equipe forense do hospital Nasser, em Gaza, tenta identificar e examinar corpos devolvidos por Israel após o cessar-fogo.
Nos últimos 11 dias, Israel devolveu 195 corpos palestinos em troca dos corpos de 13 reféns israelenses, conforme o acordo de cessar-fogo mediado pelo presidente americano Donald Trump.
Fotografias divulgadas pelas autoridades médicas locais mostram alguns corpos em estado de decomposição avançada, muitos vestidos com roupas civis ou apenas com roupas íntimas.
Muitos possuem múltiplos sinais de ferimentos e têm os pulsos amarrados atrás das costas. Outros, segundo relatam os médicos, chegaram vendados ou com panos amarrados ao pescoço.
Com poucos recursos, a equipe forense tenta esclarecer se houve tortura, maus-tratos e quem são as vítimas.
Segundo o chefe da unidade, Ahmed Dheir, uma das principais limitações é a falta de espaço para refrigeração.
Os corpos chegam a Gaza congelados e podem levar dias para descongelar. Nesse tempo, a decomposição começa, o que impede exames básicos de identificação como o histórico dentário, mas também exames mais complexos e detalhados, assim como autópsias.
“A situação é extremamente desafiadora”, disse Dheir. “Se esperamos o descongelamento, a decomposição começa quase de imediato, o que nos impede de examinar os restos adequadamente. Por isso, a solução mais viável é coletar amostras e documentar o estado dos corpos tal como chegam.”

A BBC analisou dezenas de fotos dos corpos, muitas delas compartilhadas pelas autoridades de saúde de Gaza e outras feitas por profissionais locais.
Além disso, a reportagem ouviu médicos do hospital, familiares de desaparecidos, grupos de direitos humanos e autoridades israelenses.
Três especialistas forenses externos, incluindo um especialista em tortura, também foram consultados. Todos concordaram que as dúvidas só poderiam ser esclarecidas com autópsias completas.
O médico Alaa al-Astal, da equipe forense do hospital Nasser, relatou casos de corpos com “sinais de tortura”, como hematomas e marcas de amarras nos pulsos e tornozelos.
“Houve casos extremamente graves, em que a contenção foi tão apertada que o sangue deixou de circular nas mãos, provocando dano nos tecidos e marcas nítidas de pressão nos pulsos e tornozelos”, disse.
“Mesmo ao redor dos olhos, quando as vendas foram retiradas, era possível ver sulcos profundos, imagine a força necessária para isso. A pressão deixou marcas visíveis no ponto em que a venda foi amarrada.”
Astal mencionou ainda corpos com panos no pescoço de alguns corpos, que exigem investigação adicional.
“Em um dos casos, havia um sulco no pescoço”, afirmou. “Para determinar se a morte ocorreu por enforcamento ou estrangulamento, precisaríamos realizar uma autópsia, mas, como o corpo estava congelado, o exame não foi feito.”

Sameh Yassin Hamad, integrante do comitê do governo controlado pelo Hamas, responsável por receber os corpos, disse que havia sinais de hematomas e infiltrações de sangue que indicam espancamentos severos antes da morte. Ele disse ainda que alguns corpos apresentavam ferimentos de faca no peito ou no rosto.
Em algumas das imagens obtidas pela BBC, é possível ver marcas profundas e lacres plásticos apertados nos pulsos, braços e tornozelos. Uma das fotos revela escoriações e hematomas compatíveis com o uso das amarras enquanto a pessoa ainda estava viva.
Em outros casos, os corpos exibiam apenas marcas, o que exigiria autópsia para determinar se as amarras foram aplicadas antes ou depois da morte. O uso de lacres plásticos é comum em Israel no transporte de corpos.
O Exército israelense, ao ser questionado, afirmou agir “em estrita conformidade com o direito internacional”.
A BBC também mostrou as fotografias recebidas a peritos forenses consultados fora da região. As fotos analisadas pela reportagem representam uma pequena parte dos corpos transferidos para Gaza pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
Três especialistas forenses consultados pela BBC disseram que as marcas levantam dúvidas sobre o que ocorreu, mas destacaram ser impossível chegar a conclusões firmes sobre abuso ou tortura sem autópsias.
“O que está acontecendo em Gaza é uma emergência forense internacional”, afirmou Michael Pollanen, patologista forense e professor da Universidade de Toronto (Canadá).
“Com base em imagens como essas, é imperativo realizar autópsias completas. Precisamos conhecer a verdade sobre como as mortes ocorreram, e a única forma de saber é por meio das autópsias”, afirma Pollanen.
Mesmo com dados forenses limitados, médicos do hospital Nasser dizem que o padrão de algemar os pulsos atrás do corpo, somado às marcas observadas nos membros, indica tortura.
“Quando uma pessoa está nua, com as mãos amarradas atrás das costas e marcas visíveis de contenção nos pulsos e tornozelos, isso indica que morreu nessa posição”, disse o médico Ahmed Dheir. “É uma violação do direito internacional.”

Há também indícios consistentes de abuso generalizado de detentos — inclusive civis — sob custódia israelense nos meses seguintes ao início da guerra, em outubro de 2023, sobretudo nas instalações militares de Sde Teiman, no sul de Israel, próxima à Faixa de Gaza.
Segundo Naji Abbas, diretor do Programa de Prisioneiros e Detentos da organização israelense de direitos humanos Physicians for Human Rights (Médicos por Direitos Humanos de Israel, em tradução livre), “pelo menos nos primeiros oito meses da guerra, os detentos de Gaza ficaram algemados com as mãos para trás e com os olhos cobertos, 24 horas por dia, sete dias por semana, durante meses”.
“Sabemos que muitos desenvolveram infecções graves na pele, nas mãos e nas pernas por causa das algemas.”
A BBC ouviu várias pessoas que trabalharam na base militar de Sde Teiman nos últimos dois anos, que confirmaram que os detentos eram mantidos algemados nas mãos e nos pés — mesmo durante atendimentos médicos, inclusive cirurgias.
Um profissional de saúde que atuou no local disse ter feito campanha para que as algemas fossem afrouxadas e classificou o tratamento dado aos detentos como “desumanização”.
Muitos dos detidos durante a guerra em Gaza são mantidos como “combatentes ilegais”, sem acusação formal.
Um dos desafios agora é determinar quais dos corpos devolvidos são de combatentes do Hamas mortos em confronto, quais são civis e quais seriam detentos que morreram sob custódia israelense, afirmam os médicos do hospital Nasser.
Alguns corpos devolvidos por Israel ainda trazem faixas do Hamas na cabeça ou calçados militares, mas, segundo os médicos, a maioria está nua ou em roupas civis, o que dificulta identificar o papel de cada um, interpretar os ferimentos e avaliar possíveis violações de direitos humanos.
Fotos analisadas pela BBC mostram corpos em decomposição ou completamente nus. Um deles, vestido com roupas civis e tênis, apresenta dois pequenos ferimentos de bala nas costas, segundo autoridades locais.

Crédito, AFP
Sameh Yassin Hamad, do Comitê Forense de Gaza, afirmou que Israel enviou identificação para apenas 6 dos 195 corpos devolvidos, e que cinco desses nomes estavam errados.
“Como esses corpos ficaram sob custódia das autoridades israelenses, elas têm todos os dados sobre eles”, disse o médico Ahmed Dheir. “Mas não compartilharam essas informações conosco por meio da Cruz Vermelha. Recebemos perfis genéticos de cerca de metade dos mortos, mas não há qualquer dado sobre datas ou circunstâncias das mortes, nem sobre o momento ou o local das detenções.”
A BBC questionou o exército israelense sobre os detalhes da investigação, incluindo a acusação da equipe forense de Gaza de que Israel teria removido dedos de alguns corpos para testes de DNA.
O Exército israelense afirmou que “todos os corpos devolvidos até agora são de combatentes dentro da Faixa de Gaza” e negou ter amarrado qualquer um deles antes da entrega.
Na quarta-feira (22/10), Shosh Bedrosian, porta-voz do gabinete do primeiro-ministro de Israel, classificou os relatos vindos de Gaza como “mais um esforço para demonizar Israel” e sugeriu que a imprensa deveria concentrar-se na situação dos reféns israelenses.

Enquanto famílias de desaparecidos se reúnem diante dos portões do hospital Nasser, o médico Ahmed Dheir e sua equipe enfrentam forte pressão para identificar os mortos e esclarecer o que aconteceu com eles.
Até agora, cerca de 50 corpos foram identificados — em geral por características básicas, como altura, idade e ferimentos anteriores visíveis. Outros 54 foram enterrados sem identificação nem reivindicação, devido à falta de espaço na unidade.
Muitos parentes de desaparecidos acompanharam o enterro dos corpos não identificados nesta semana, na esperança de que um deles fosse de seus familiares.
“É difícil enterrar um corpo sem saber se é realmente o da pessoa certa”, disse Rami al-Faraa, que ainda procura o primo.
“Se houvesse exame [de DNA], saberíamos onde ele está — sim ou não”, afirmou Houwaida Hamad, em busca do sobrinho.
“Minha irmã saberia se o que estamos enterrando é mesmo o filho dela ou não.”
O acordo de cessar-fogo mediado por Trump trouxe algum alívio para Gaza, mas pouco consolo para a maioria das famílias dos desaparecidos, muitas delas enterrando um corpo no lugar de um irmão, marido ou filho.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


