
A menor influência da cultura religiosa, a instabilidade econômica e a equiparação legal entre união estável e casamento estão entre os principais fatores que explicam o aumento de uniões consensuais e a queda dos casamentos pela primeira vez no Brasil. O cenário inédito foi apresentado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no último dia (5).
Segundo o Censo 2022, as uniões consensuais – que podem ou não ser registradas em cartório – cresceram de 28,6% em 2000 para 38,9%, em 2022, entre brasileiros de 10 anos ou mais. Já os casamentos realizados simultaneamente no civil e no religioso caíram de 49,4% para 37,9%. A única modalidade de casamento que avançou foi o exclusivamente civil, passando de 17,5% para 20,5%.
Apesar da mudança no perfil das uniões, o número total de relações conjugais permanece estável, com um leve crescimento impulsionado pelo envelhecimento da população. A taxa de nupcialidade, junto com a de fecundidade, é um dos indicadores mais relevantes para projetar a demografia do país, que está em declínio e deve parar de crescer em 2041, segundo estimativas do IBGE.
Mudanças legais deixaram união estável e casamento mais semelhante
A PEC do Divórcio, aprovada em 2010, possibilitou o divórcio direto, eliminando exigências como separação judicial prévia ou separação de fato. Antes disso, a Lei do Divórcio só permitia apenas um novo casamento após o divórcio, restrição derrubada em 1989.
Caio Cabeleira, doutor em Direito Civil pela USP, acredita que essas mudanças desestimularam o casamento. “Eu entendo que o legislador acabou desincentivando as pessoas a se casarem. Porque o casamento se tornou um contrato que pode ser desfeito a qualquer momento por simples vontade das partes”, avalia.
De acordo com o jurista, união estável e casamento passaram a ser muito semelhantes no campo jurídico. “Se o acesso ao casamento e ao divórcio fosse mais rígido, a gente estaria falando de opções muito claras para as pessoas que assim o querem. Ou uma união que pode ser desfeita a qualquer momento ou uma instituição jurídica mais séria, em que há mais proteção e deveres claros. Mas, depois de 2010, legalmente falando, o casamento virou nada”, analisa.
Diminuição de prática religiosa também alterou comportamento social
Marcelo Couto, doutor em Família pela UCSal e secretário da Família, Cidadania e Segurança Alimentar de Osasco (SP), aponta a diminuição da prática religiosa e maior aceitação social das uniões informais como outros fatores.
“Hoje há uma influência menor da religião na vida das pessoas e, também, uma certa flexibilização da parte da religião com relação a esse comportamento. Por exemplo, entre os que se declaram católicos tem mais gente vivendo em união consensual do que casados. Isso é uma mudança cultural”, destaca.
Os dados do IBGE confirmam. Para os católicos, há 40,9% em uniões consensuais, 40% em casamentos no civil e no religioso, 15,3% só no casamento civil e apenas 3,7% só no religioso. Já em relação aos evangélicos, 40,9% se casaram no civil e religioso, 29,1% só no civil, 28,7% estão em uniões consensuais e 1,3% apenas no religioso. A opção pela união estável também tem relação com renda: 52,1% das pessoas com rendimento domiciliar per capita de até meio salário mínimo vivem em união consensual. “Por mais que exista o divórcio, quando as pessoas decidem se casar é algo por prazo indeterminado. A insegurança econômica, indefinição com relação à renda ao trabalho, somada a uma capacidade de aceitação social sobre essa conduta faz com que as pessoas retardem essas decisões”, explica Couto.
No casamento, a paternidade é presumida
Em caso de dissolução da união, questões como guarda dos filhos menores ou pagamento de pensão alimentícia não possuem muitas diferenças em relação ao casamento. “A diferença mais substancial é que, em um casamento, quando a mulher tem um filho, a paternidade do marido já é reconhecida decorrente da lei. Ou seja, mesmo que o pai não queira, a criança será registrada no nome dele. Na união consensual, esse reconhecimento vai depender do consentimento do pai, quando não houver a escritura pública de união estável”, esclarece Cabeleira.
Em relação ao desenvolvimento dos filhos, estudos demonstram que transições múltiplas – uniões, divórcios e novas uniões – estão associadas, por exemplo, a fracasso escolar das crianças e problemas comportamentais, como questões de uso de drogas e solidão.
“O casamento é o contexto mais favorável para que uma criança se desenvolva. Não importa somente ter um pai ou ter uma mãe, mas importa a estabilidade dessas relações. E nesse sentido, o casamento é pelo menos uma promessa de constituir uma relação estável, ainda que depois as pessoas tenham dificuldade de manter aquele compromisso assumido”, afirma.
A instabilidade familiar é um fator de risco para problemas de ordem emocional e social de crianças, mas também para adultos. Pesquisas realizadas mostram que o divórcio tem impacto negativo para a saúde mental e física das pessoas. Um estudo de 2020 demonstrou que pessoas que passam por um divórcio frequentemente relatam níveis mais altos de estresse, ansiedade, depressão e isolamento social em comparação com a população em geral.
“A diminuição de casamentos tem um desafio de ordem pessoal, mas tem também desafios em termos de políticas públicas. É preciso pensar o quanto as pessoas que tomam a decisão de constituir família têm condições de sustentar isso, a partir de questões econômicas e de acesso a trabalho, por exemplo”, conclui Couto.
Fonte. Gazeta do Povo


