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- Author, Julia Braun
- Role, Enviada da BBC News Brasil a Roma
Centenas de pessoa hospitalizadas e mais de 20 mortas: esse foi o saldo de um escândalo que abalou a reputação do vinho italiano – e que mudou para sempre a vinicultura na Itália.
O ano era 1986 e o país se consolidava como um dos maiores produtores de vinho do mundo. Com milhares de hectares de vinhedos e um clima favorável, a produção anual ultrapassava os 70 milhões de hectolitros (1 hectolitro equivale a 100 litros).
O cenário, porém, era de estoques excessivos e forte concorrência interna, o que pressionava os preços para baixo. Muitos pequenos produtores e comerciantes, especialmente nas regiões do norte da Itália, buscavam maneiras de aumentar o teor alcoólico de vinhos baratos sem elevar custos, o que abriu espaço para práticas ilegais de adulteração.
Em março de 1986 foram registrados os primeiros casos de envenenamento na província de Asti, localizada na região do Piemonte, muito conhecida pela vinicultura. Duas pessoas morreram e várias foram internadas após consumir um vinho de mesa vendido localmente.
Uma investigação foi aberta e, após testes em laboratório, se descobriu que alguns comerciantes estavam adicionando nos vinhos uma substância que ficou conhecida dos brasileiros nas últimas semanas: o metanol.
“Naquele momento, a vinicultura italiana ainda estava crescendo e as práticas e pesquisas sobre qualidade estavam em um ponto muito inicial”, explica Milena Lambri, pesquisadora da Universidade Católica do Sagrado Coração especializada em enologia e segurança alimentar.
“Muitos produtores não sabiam trabalhar o vinho da maneira correta e decidiram adicionar metanol para ampliar o teor alcoólico e deixar seus produtos mais competitivos”.
O ‘escândalo do vinho’
Os primeiros casos rapidamente levaram à descoberta de uma adulteração em larga escala, envolvendo centenas de milhares de litros de vinho contaminado.
O Ministério da Saúde italiano ordenou o recolhimento imediato de garrafas suspeitas e, em poucos dias, 25 milhões de litros de vinho adulterado foram confiscados, segundo os registros da época.
Em algumas garrafas, as autoridades relataram ter encontrado mais de 20 vezes o limite permitido de metanol.
Eventualmente, as investigações identificaram duas empresas do Piemonte como os principais centros de mistura de metanol em vinho. Mas toda uma rede de comerciantes intermediários que compravam vinho a granel, adulteravam e revendiam sob rótulos genéricos de baixo custo, também foi rastreada.
Mas o escândalo não terminou nas fronteiras italianas. Em pouco tempo, países que importavam vinhos italianos, como Suíça, Alemanha, França e Bélgica, também apreenderam lotes suspeitos.
As exportações italianas de vinho foram suspensas temporariamente e governos emitiram alertas contra o consumo de vinho italiano. Ao todo, milhões de litros da bebida foram apreendidos e descartados como lixo industrial em toda a Europa.
As investigações atingiram mais de 60 empresas produtoras de vinho e, por fim, mais de 40 indivíduos foram acusados formalmente, vários dos quais foram condenados.

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O julgamento principal relacionado ao escândalo só foi concluído em 1993. As sentenças variaram de 14 a 2 anos de prisão – embora nenhum dos réus tenha cumprido as penas decretadas inicialmente, diante dos recursos abertos pelas defesas.
Muitos processos pedindo indenizações também foram abertos pelas vítimas e suas famílias contra os produtores e vinícolas envolvidos. Alguns deles demoraram mais de duas décadas para serem resolvidos, mas por fim nenhuma compensação foi paga, após os réus serem considerados incapazes de arcar com o fardo financeiro.
E assim como está acontecendo no Brasil, que hoje vive uma onda de intoxicações por metanol por ingestão de bebidas alcoólicas adulteradas, o caso abalou profundamente a confiança dos consumidores.
Até mesmo os produtores de vinhos finos, que não estavam envolvidos no escândalo, acabaram sofrendo. No final de 1986, o mercado italiano de vinhos acumulava perdas de 1 trilhão de liras, com uma queda de 20% no valor geral do setor. As exportações caíram mais de 40% e as vendas internas despencaram 70%.

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A ‘virada de chave’
Mas o que aconteceu em seguida talvez tenha marcado ainda mais o mercado italiano de vinhos.
Segundo especialistas, foi a partir do escândalo de adulteração com metanol que as vinícolas locais “viraram a chave” de quantidade para qualidade.
“Todos nós consideramos que este escândalo talvez tenha sido a oportunidade mais importante para o mercado de vinhos italiano”, diz Milena Lambri.
“Os produtores mudaram completamente a forma de fazer vinicultura e enologia, começando pelo campo e pelo solo, monitorando o clima, monitorando o crescimento das plantas, o manejo da viticultura, trabalhando com fertilização, manejo da copa, tudo isso.”
Segundo a especialista, passou-se a investir muito mais conhecimento e pesquisa. E os próprios consumidores passaram a se importar mais com a qualidade do vinho consumido.
“A Itália aprendeu uma lição muito dura com essa tragédia. Mas se recuperou, criando um renascimento do vinho e elevando sua qualidade. Hoje, os controles de qualidade permanecem rigorosos, mas as vinícolas italianas estão cada vez mais buscando a excelência”, afirma Gaetano Cataldo, sommelier e consultor do mercado de vinhos italiano.
O escândalo também forçou uma modernização institucional: regras mais rígidas, controles laboratoriais, certificações de segurança.
Uma lei de 1992 se tornou um marco na regulamentação das denominações de origem na Itália, estabelecendo uma estrutura clara e rigorosa para a produção e comercialização de vinhos com denominação de origem.
Com isso, os vinhos passaram a ser classificados de acordo com o tipo de uva, seu local de origem, os métodos de cultivo e o teor alcoólico, facilitando a identificação da qualidade pelos consumidores.
A implementação da lei também foi acompanhada por um sistema de controle e fiscalização rigoroso, com a criação de comitês nacionais e regionais responsáveis pela supervisão.
“O sistema também ajudou com a rastreabilidade e graças a ele hoje é possível checar toda a cadeia de produção de um vinho”, resume Gaetano Cataldo.
As mudanças implementadas ainda serviram como uma espécie de “seleção de qualidade”, afirma Lambri.
“Apenas os mais cuidadosos e interessados em impulsionar uma nova linha na cultura do vinho e na enologia sobrevieram”, diz a pesquisadora da Universidade Católica do Sagrado Coração.

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Lambri explica que o país hoje precisa seguir a regulamentação europeia sobre produção de vinho, mas suas próprias leis são mais rigorosas do que a da União Europeia (UE). “O mercado de vinhos italiano tem provavelmente a regulamentação mais rigorosa do mundo atualmente”, diz.
Hoje, o país exporta menos que nos anos 80, mas tem uma produção mais focada em vinhos finos do que no passado.
Ainda assim, a Itália vem competindo com a França pelo título de maior produtora do mundo, com 44 milhões de hectolitros em 2024, de acordo com a Agência de Pagamentos da Agricultura (AGEA).
E, eventualmente, os italianos voltaram a confiar totalmente na qualidade do vinho, tanto que a população é hoje a terceira que mais bebe vinho no mundo, com um consumo per capita em torno de 42 litros por ano.
Para efeito de comparação, no Brasil o consumo per capita de vinho em 2024 foi de 2,1 litros.
Uma lição para o Brasil?
No caso brasileiro, as investigações iniciais encabeçadas pela Receita Federal em parceria com a Polícia Federal, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e o Ministério da Agricultura, apontam que o metanol foi usado clandestinamente na produção de bebidas alcoólicas.
As bebidas afetadas são destiladas, como cachaça, aguardente e whisky. Segundo a Receita Federal, há indícios de que o metanol, utilizado no uso de indústrias químicas, foi desviado para o uso de combustíveis e acabou sendo também utilizada ilegalmente na adulteração do setor alcoólico.
E apesar de se tratarem de casos diferentes, os especialistas da indústria do vinho afirmam que há muito que o Brasil pode aprender com a forma como a Itália superou o seu próprio escândalo com metanol.
Para Gaetano Cataldo, os desafios vivenciados pelos dois países mostram a importância de “permanecer vigilante”, assim como de garantir que a população esteja informada sobre tudo que está acontecendo, para minimizar as consequências.
O especialista afirma ainda que o Brasil pode se beneficiar de um sistema de rastreabilidade mais rígido, como o da Itália.
“Também é necessário e recomendado ensinar as pessoas a beberem conscientemente e, ao mesmo tempo, com responsabilidade, porque apenas alguns criminosos não podem afetar a reputação de um país tão grande como o Brasil”, diz.
Milena Lambri afirma que o caminho pode estar no reforço do cumprimento das regras.
A especialista diz ainda que os consumidores estão cada vez mais atentos à qualidade dos produtos e sua origem, o que naturalmente já aumenta a responsabilidade dos fabricantes.
“Os produtores precisam prestar muita atenção na interação com o conhecimento do consumidor, que está a cada ano mais rico em competência e em informação, especialmente com a internet.”
Fonte.:BBC NEWS BRASIL