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- Author, Leire Ventas
- Role, Correspondente da BBC News Mundo em Los Angeles
- X, @leire_ventas
“Aqui, quem fala, quem critica, quem não se ajoelha diante do ídolo, vai para a cadeia”, disse o advogado Enrique Anaya em um programa de televisão salvadorenho em 3 de junho.
Ele estava se referindo ao presidente de El Salvador, Nayib Bukele, cujo segundo mandato ele vinha chamando de inconstitucional há meses.
“Mas você está falando e está criticando”, respondeu o entrevistador. “Sim, e claro que estou com medo”, admitiu Anaya, que tem doutorado em Direito Constitucional.
Quatro dias depois, ele foi preso, acusado de lavagem de dinheiro. Isso aconteceu menos de três semanas depois de a polícia prender Ruth Eleonora López, outra advogada que questionou o presidente e seu governo, que está sendo processada por suposto enriquecimento ilícito.
Essas prisões de grande repercussão e a saída do país de 40 jornalistas e mais de dez ativistas de direitos humanos que alegam temer o mesmo destino, somadas à recém aprovada Lei de Agentes Estrangeiros, levaram organizações nacionais e internacionais a alertar sobre uma escalada autoritária no país da América Central.
Um ponto de inflexão na repressão sobre as vozes críticas, segundo especialistas consultados pela BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, que teria a ver com o fato de Bukele se sentir respaldado por sua aliança com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que não apenas o elogiou, como o tornou “indispensável” para sua política de deportação.
“Ele acredita, com razão, que não vai receber nenhuma crítica deste governo, como aconteceu com o de (Joe) Biden”, diz Enrique Roig, que foi subsecretário adjunto do Escritório de Democracia, Direitos Humanos e Trabalho do Departamento de Estado dos EUA.

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Nem o Ministério Público nem a Presidência responderam aos vários pedidos de entrevista da BBC News Mundo. Mas em 1º de junho, durante seu discurso anual à nação, o presidente se dirigiu à imprensa e disse: “Quer saber? Não me importo se me chamarem de ditador. Prefiro isso a que os salvadorenhos sejam mortos nas ruas.”
E, assim, ele destacou mais uma vez suas conquistas na área de segurança, que renderam a ele um apoio esmagador da população, como as pesquisas continuam mostrando.
A mais recente, do Instituto de Opinião Pública (Iudop) da Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (UCA), atribui a ele uma nota 8,15, embora também indique que quase seis em cada dez salvadorenhos temem represálias se criticarem o governo.
Prisões de destaque
Duas semanas após Anaya ser detido, o juiz decretou sua prisão preventiva na segunda-feira (23/6) e enviou seu caso para investigação, em um processo idêntico ao de Ruth López.
“Não vão me calar, quero um julgamento público!”, López gritou diante da imprensa, antes de comparecer à sua primeira audiência em 4 de junho. E na saída, ela declarou: “Todas as acusações são por minha atividade jurídica, por minhas denúncias contra a corrupção no governo. Sou inocente, sou uma presa política”.
Como chefe da unidade anticorrupção da organização de direitos humanos Cristosal, a advogada teria denunciado pelo menos 50 possíveis casos durante o governo de Bukele.

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Agora, tanto sua defesa quanto a de Anaya temem que a prisão de ambos seja prolongada sob um regime de exceção que suspende garantias constitucionais.
Decretado há mais de três anos pela Assembleia a pedido de Bukele, como um instrumento central para seu combate às gangues, permitiu reduzir drasticamente os homicídios, ao mesmo tempo em que tornou El Salvador um dos países com as maiores taxas de encarceramento do mundo.
Em entrevista recente à BBC News Mundo, o ministro da Segurança, Gustavo Villatoro, disse que, apesar de restarem apenas resquícios das estruturas criminosas outrora sangrentas do país, não há planos imediatos para suspender o estado de emergência, que já foi prorrogado 38 vezes.
Embora com um perfil menos público, as prisões de Anaya e López se somam às de pelo menos uma dúzia de outros defensores de direitos humanos, ativistas, líderes camponeses e empresários do setor de transportes em maio.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é um dos muitos órgãos que manifestaram preocupação com eles, assim como com “a existência de mandados de prisão” contra outros defensores de direitos humanos.
“As organizações da sociedade civil questionam que as causas penais seriam uma forma de represália por seu trabalho com pessoas detidas durante o regime de exceção e por denúncias de abusos nas prisões”, declarou a entidade, que faz parte da Organização dos Estados Americanos (OEA).
“Diante das alegações de uso indevido do direito penal com o possível propósito de intimidar, punir ou impedir as atividades de defesa dos direitos humanos, a CIDH solicita ao Estado que se abstenha de incorrer nessa prática.”
‘Êxodo em massa’
Neste contexto, vários ativistas e profissionais da área de direitos humanos optaram por deixar o país nas últimas semanas.
Esse é o caso da diretora da ONG Socorro Jurídico Humanitário (SJH), Ingrid Escobar, que anunciou sua decisão em junho, explicando que havia sido alertada sobre um possível mandado de prisão contra ela.
A SJH, que foi criada logo após a aprovação do regime de exceção em março de 2022, monitorou pelo menos 10 mil casos de detenção que considera impróprios, e denunciou a morte de mais de 400 pessoas sob custódia do Estado.
Em relação a isso, Andrés Guzmán Caballero, que até o início do mês era o comissário presidencial para direitos humanos e liberdade de expressão, disse em entrevista à BBC News Mundo que seu escritório revisou e encaminhou cada um dos casos que recebeu para que pudessem ser investigados pelo órgão competente.
“Tudo foi documentado e informado, a ponto de não haver um único processo aberto contra o governo de El Salvador por desaparecimentos, homicídios ou torturas dentro do sistema carcerário”, ele afirmou, ao mesmo tempo em que questionou por que “ninguém pergunta mais sobre as vítimas das gangues”.

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A Associação de Jornalistas de El Salvador também registrou um “êxodo em massa” no setor.
De acordo com uma declaração conjunta de outras organizações de imprensa, há um “deslocamento forçado” de cerca de 40 jornalistas “como resultado de um padrão contínuo de assédio, intimidação e restrições arbitrárias ao exercício do jornalismo”.
Óscar Martínez, editor-chefe do site de notícias El Faro, deixou o país com outros colegas após uma publicação com grande repercussão.
“Estávamos prestes a voltar neste fim de semana, mas sabíamos que eles estavam prontos para nos prender no aeroporto Monseñor Romero (de San Salvador), e sabemos o motivo: por ter feito jornalismo, por ter denunciado os pactos de Bukele e as gangues”, ele escreveu na rede social X em 9 de junho.
O El Faro havia publicado recentemente um vídeo no qual dois líderes da gangue Barrio 18 contaram diante das câmeras, um deles para o rosto descoberto, como sua organização criminosa começou a se aproximar do círculo de Bukele, os favores que, segundo eles, teriam recebido e como as gangues supostamente ajudaram o atual presidente a chegar ao poder.
Bukele e membros do seu governo negaram veementemente, e em várias ocasiões, a existência de acordos com as principais gangues do país — as duas facções do Barrio 18 e a Mara Salvatrucha ou MS-13 — com o objetivo de reduzir a taxa de homicídios.
Embora o Departamento de Tesouro dos EUA, durante o governo anterior, tenha imposto sanções a dois de seus altos funcionários — Osiris Luna, diretor dos centros penais de El Salvador, e Carlos Marroquín, diretor da Unidade de Reconstrução do Tecido Social — por terem participado de tais diálogos.
Decisão difícil
Jornalistas com um perfil menos público também deixaram o país, como uma repórter investigativa que conversou com a BBC News Mundo sob a condição de que sua identidade e o meio de comunicação para o qual trabalha não fossem revelados.
“O clima começou a ficar muito pesado, e estamos sofrendo muita interferência para poder fazer nosso trabalho”, explica ela por telefone de um país vizinho de El Salvador.
“Os soldados te detêm, pedem que você se identifique, apesar de andar com as credenciais, exigem que você exclua fotos ou vídeos, embora isso seja contra a lei e haja um artigo na Constituição que nos protege”, acrescenta.
Como resultado, ela diz que eles definiram protocolos de segurança, que envolvem se reportar constantemente, evitar rotinas e usar canais de comunicação seguros.
Quando uma fonte a alertou de que seu nome estava em uma lista de “alvos prioritários de prisão”, ela decidiu deixar o país praticamente da noite para o dia.
“Eu não pensei. Não acho que seja hora de sentar e esperar”, diz ela.
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Não é a primeira vez que ela toma esse tipo de decisão, mas desta vez ela está pensando em prolongar sua estadia no exterior.
“Não é fácil, porque você sai com uma mochila nas costas e quase nada mais, e deixa sua família, seus amigos, suas raízes”, diz ela. “Gostaria de ver minha mãe envelhecer, ver minhas sobrinhas crescerem, mas se eu colocar na balança, recuperei a paz de espírito no exterior”, onde, segundo ela, planeja continuar fazendo jornalismo.
A BBC News Mundo solicitou, por meio de vários canais, uma entrevista com a Procuradoria Geral da República e um comentário oficial sobre os supostos mandados de prisão citados pelos jornalistas acima mencionados, mas até o momento da publicação da reportagem, não havia recebido resposta.
‘Agentes estrangeiros’
A possível prisão de seus profissionais não é a única coisa que a imprensa independente e as organizações não governamentais de El Salvador temem.
Eles também temem que a Lei de Agentes Estrangeiros, promovida pelo próprio Bukele, e que recebeu sinal verde da Assembleia Legislativa controlada pelo partido governista em 20 de maio, acabe sufocando eles.
Diante do questionamento de que seria uma espécie de “lei da mordaça”, durante o debate legislativo que levou à sua tramitação, o presidente da Assembleia, Ernesto Castro, do partido governante Novas Ideias, disse que os chamados “agentes estrangeiros” poderiam “continuar gritando a mesma coisa”.
“A única coisa que eles deverão fazer é pagar 30% (sob a forma de imposto sobre cada transação financeira ou doação que receberem do exterior), dizer quem dá a eles os fundos e para que os utilizam”, acrescentou.
Nem o Legislativo nem o Executivo explicaram a que vão se destinar os fundos arrecadados. E as organizações que quiserem operar no país também vão ter de se registrar.
O texto da lei explica que um “agente estrangeiro” é “qualquer pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira, que dentro do território de El Salvador realiza atividades que respondem a interesses, são controladas ou financiadas, direta ou indiretamente, por um mandante estrangeiro”.
Por isso, os analistas interpretam que o conceito abrange vários grupos, desde organizações de direitos humanos e associações de moradores, passando por grupos religiosos, até agências de cooperação estrangeiras e veículos de comunicação independentes.
O Escritório do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos também afirmou que a lei é “motivo de preocupação”.
A legislação “poderia restringir o trabalho da sociedade civil, e contradiz as obrigações internacionais”, advertiu no X a delegação da União Europeia em El Salvador, outra entidade que manifestou reservas em relação à lei.
A reação de Bukele não demorou e, na mesma rede social, ele lamentou que “um bloco envelhecido e super-regulamentado ainda insista em dar lições ao resto do mundo”.
O presidente voltou a defender a polêmica lei durante seu pronunciamento em 1º de junho. “Acho que (a suposta ingerência estrangeira) deveria ser proibida em todos os países do mundo. Mas ainda vamos permitir. A única coisa que vamos pedir é que paguem seus impostos”, disse ele em pronunciamento transmitido em rede nacional.

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Diante desta perspectiva, Verónica Reyna, do Serviço Social Passionista (SSPAS), uma organização que trabalha há 36 anos na prevenção da violência, e cujo financiamento é mais de 80% externo, teme que não consiga sobreviver.
Eles estão determinados a se registrar e a cumprir as exigências legais.
“Mas tememos que o registro seja uma desculpa para gerar um descumprimento sistemático da nossa parte: que eles nos peçam um documento, depois outro, mais outro, e que alguns, devido a restrições de tempo ou qualquer outra coisa, não consigamos apresentar, e essa será a justificativa técnica para revogar nosso status legal”, explicou.
Outro cenário possível é que isso acabe sufocando eles financeiramente, ou que force a retirada da cooperação internacional, deixando seus 70 funcionários sem trabalho.
“E ainda há o medo de que qualquer ação de denúncia que a gente faça, seja considerada desordem pública ou uma ameaça à estabilidade do país e, portanto, a equipe ou a instituição como um todo seja criminalizada”, acrescenta Reyna.
O fator Trump
Os analistas internacionais consultados pela BBC News Mundo concordam que a nova legislação, as prisões de destaque e o êxodo de jornalistas e defensores dos direitos humanos constituem um ponto de inflexão em uma trajetória que o governo já vinha seguindo
“Não é nenhuma surpresa, porque o governo Bukele já tinha essa tendência cada vez mais autoritária”, diz Enrique Roig, que agora trabalha no instituto de pesquisa independente Seattle International Foundation. “Mas as últimas medidas marcam um antes e depois na repressão sobre vozes críticas e a dissidência”.
Christopher Sabatini, pesquisador do programa para a América Latina, Estados Unidos e Américas do think tank Chatham House, concorda com ele.
Para ambos os especialistas, isso tem a ver com o efeito que o número crescente de investigações sobre supostas negociações com gangues estaria tendo sobre a imagem de Bukele a nível internacional.
Mas eles insistem que, acima de tudo, as últimas ações de Bukele se devem ao fato de ele se sentir “empoderado” por seu homólogo americano.

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“Ele percebe que tem carta branca, porque Trump nunca vai criticar seu melhor aliado na América Latina, e um elemento fundamental da sua política de deportação”, observa Sabatini.
No momento, nenhum dos analistas prevê mudanças nessa tendência em um futuro próximo.
“Se houver uma mudança política nos EUA em novembro do ano que vem (nas eleições de meio de mandato, quando todos os membros da Câmara dos Representantes e um terço do Senado são eleitos), os democratas assumirem mais poder e começarem a exigir mais prestação de contas, isso talvez possa frear o comportamento de Bukele”, avalia Roig.
“Mas, no momento, não vejo isso acontecendo.”
‘Não me importo se me chamarem de ditador’
A BBC News Mundo voltou a solicitar uma entrevista com a Presidência para saber sua posição sobre esta e outras questões, mas ainda não obteve resposta.
No entanto, em seu discurso de 80 minutos à nação em 1º de junho, Bukele deixou bem clara sua postura diante das críticas.
“Alguns dizem que antes havia democracia em El Salvador, e agora não há mais. Vocês leram isso, não é? Mas a verdade é que antes se podia escolher entre o ruim e o pior. Quem disser que não é assim é porque essa era sua fonte de renda. Os únicos que dizem isso são os que não conhecem ou os que viviam disso”, ele afirmou.
“Dizem que prendemos defensores dos direitos humanos, dissidentes e opositores do regime”, completou.

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“Eu fico pensando em como podemos combater a corrupção se toda a oposição tem imunidade. Agora alguns colocaram o crachá de perseguidos políticos. Ser jornalista do clube permite a eles infringir a lei sem consequências”, prosseguiu.
“Eles não estão lá para defender causas, estão lá para obter impunidade da corrupção e do crime para seus membros. Eles querem impor sua narrativa.”
Popularidade e medo
Seja como for, as críticas provenientes de dentro e fora do país não parecem afetar sua altíssima popularidade.
Segundo uma pesquisa divulgada no fim de maio pela Cid Gallup, Bukele continua tendo mais de 80% de aprovação da população.
No levantamento realizado pelo Iudop, um dos institutos de pesquisa mais confiáveis do país, os entrevistados deram uma nota 8,15 para ele como presidente em seu sexto ano de gestão, e nota 7,85 para seu governo, em uma escala de 1 a 10.
No entanto, a pesquisa também aponta que 57,9% da população considera que é provável ou muito provável que uma pessoa ou instituição sofra consequências negativas por criticar o governante.
Deste total, 48,3% acreditam que a consequência mais provável é ser detido ou encarcerado.
E 70,6% dos entrevistados afirmaram que estariam de acordo ou muito de acordo com um terceiro mandato de Bukele.

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“‘Em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode ser melhor do que um democrático” — você concorda muito, concorda, discorda ou discorda muito desta frase?, questiona outra pergunta da pesquisa.
E 52,2% da população respondeu concordar ou concordar muito com a afirmação.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL