Niède Guidon costumava dizer que ia preparar e desenvolver a comunidade da serra da Capivara para que, quando partisse, as pessoas pudessem continuar o trabalho de preservar a região, segundo Raimundo de Lima Miranda Júnior, 46, proprietário do hotel Baixão do Ouro. O estabelecimento dele fica a poucos minutos da entrada do Parque Nacional Serra da Capivara. “Depende de nós agora”, afirma ele.
A arqueóloga morreu na última quarta-feira (4) aos 92 anos, vítima de um infarto, em sua casa na cidade de São Raimundo Nonato. O trabalho de Guidon naquela região do Piauí integrou a ciência à comunidade local. A partir da criação do parque, em 1979, foi necessário estruturar a região, o que envolveu gerar renda e emprego para a população local.
Júnior nasceu em Sítio do Mocó, povoado localizado na cidade Coronel José Dias, próximo aos principais circuitos de visitação da serra. Ele frequentou as escolas integrais fundadas por Guidon como parte dos Núcleos de Apoio à Comunidade (NACs). O projeto, que começou em 1989 e foi até 2001, tinha como objetivo integrar as populações locais na proteção do parque.
Para isso, era preciso trabalhar na redução da pobreza e pôr os filhos dos moradores em escolas rurais. Durante os 12 anos em que as escolas ficaram ativas, 2,5 crianças passaram por elas, segundo a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), um legado de Guidon criado para preservar o patrimônio cultural e nacional do parque. As instituições também forneciam alimentação e atendimento médico.
Júnior lembra que, quando criança, ouvia a pesquisadora em palestras na escola dizer que chegaria o dia em que gente do mundo inteiro viajaria para a região. À época, ele não conseguia acreditar. “Vivíamos aqui no sertão, no semiárido, distante de tudo. Mas, agora, a gente tá vendo que isso tudo já está acontecendo.”
Guidon também afirmava que, quando a chegada de turistas começasse, seria necessário construir infraestrutura como hotéis e que quem deveria prevalecer nesses negócios eram os próprios habitantes.
Nos meses de seca da região, de dezembro a fevereiro, Júnior conta que o pai precisava ir até o Pará trabalhar no garimpo. Havia outros homens que iam para Brasília trabalhar em construção civil e outros se direcionavam a São Paulo. As crianças ficavam com as mães em casa, e o trabalho era sobretudo de agricultura familiar de subsistência.
Mas, segundo Júnior, entre o fim da década de 1980 e o início da de 90 isso mudou. O pai deixou de fazer migrações sazonais e começou a trabalhar como técnico de arqueologia com Guidon. “De uma hora para a outra, transformou a vida da gente.”
Júnior também seguiu o caminho da arqueologia. Fez cursos de conservação e começou a atuar na limpeza de pinturas rupestres, em uma equipe coordenada por Guidon. Trabalhou com ela por 12 anos. Em 2018, a criação do Museu da Natureza, localizado na entrada do parque, aumentou o fluxo de turistas e Júnior decidiu se arriscar e entrar no ramo da hotelaria.
Ele começou seu hotel em um terreno onde já havia um clube recreativo e construiu três apartamentos. O lugar cresceu e, hoje, são 23.
Talita Aparecida Landim de Souza, 35, que atua como guia no parque, também diz que teve sua vida influenciada por Guidon. A arqueóloga, segundo ela, mostrou que a preservação da região poderia ser uma forma de gerar renda para a comunidade.
A guia nasceu em São Paulo, mas sua família é do Piauí. Em 2003, aos 14 anos, ela foi morar na comunidade Sítio do Mocó. De lá para cá, muita coisa mudou. “Aqui, era tudo mato. E, hoje, a gente vê a comunidade crescendo, as pessoas empreendendo, com pousadas, artesão crescendo. As pessoas buscando se formar, os jovens com o olhar voltado também para o parque.”
Ela se tornou guia a partir de um curso fornecido pela Fundham. Também trabalhou com cerâmica reproduzindo as imagens rupestres do parque. Isso se tornou mais uma das atividades econômicas da região.
E, de acordo com Talita, era um desejo de Guidon que as mulheres ganhassem espaço no mercado de trabalho. “Quando ela chegou aqui era muito difícil ver as mulheres trabalhando fora de casa.”
Uma maneira encontrada de incluir mulheres foi contratá-las para trabalhar nas escolas, como cozinheiras por exemplo, e colocá-las nas guaritas dos parques. “Hoje, nas guaritas dos parques, são só as mulheres que trabalham.”
Fonte.:Folha de S.Paulo