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7 de dezembro de 2025

Niemeyer: só na luta política se pode deter a miséria – 07/12/2025 – Folha 105 anos

Niemeyer: só na luta política se pode deter a miséria – 07/12/2025 – Folha 105 anos

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Oscar Niemeyer construía palácios, apartamentos, escolas. Mas não tinha ilusões. “Não acredito em obra social realista realizada no regime social existente”, escreveu em texto publicado na Folha, em 1983. “Vejo-as paternalistas e demagógicas, fora da escala dolorosa da miséria brasileira.”

O arquiteto via operários construindo cidades inteiras “sem de nada disso participarem”. E achava que sua arquitetura, por mais bela que fosse, não mudaria isso.

“Aos que as reclamam, limito-me a lembrar-lhes que, se a miséria os comove, só na luta política poderão encontrar meios de detê-la”, escreveu. E citou Che Guevara: “Pesaroso, lembro como são pobres e desinformados nossos irmãos brasileiros, impaciente ao lembrar as palavras amargas de Guevara: ‘Povo desarmado não existe'”.

Niemeyer continuava fazendo sua arquitetura, “consciente da precariedade das coisas e da pouca importância que merece o meu trabalho diante da pobreza imensa que nos cerca”

No texto, o arquiteto também criticava o racionalismo arquitetônico que dominou após o surgimento do concreto armado. “Os primeiros croquis cheios de inovação e fantasias foram postos de lado. Surgiram regras, princípios, incompreensões inesperadas e, pouco a pouco, aquele mundo de formas novas se transformou numa arquitetura monótona e repetitiva.”

E encerrou: “Um mundo todo feito de flores e de pedras, tão injusto e discriminatório que só na contestação permanente e na luta política, encontramos razão de aceitá-lo.”

Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.

Arquitetura (25/6/1983)

A evolução da arquitetura se caracteriza pelas suas obras mais importantes, aquelas que especulando na técnica se fizeram diferentes e inovadoras. E quando dela nos ocupamos vale a pena voltar ao passado e sentir como a idéia da obra de arte se integrava nas razões utilitárias da arquitetura, fazendo-a mais rica, mais bela, com suas colunatas, seus ornamentos, pinturas e esculturas.

Com o advento do concreto armado a arquitetura se modificou inteiramente. As paredes que antes sustentavam os edifícios passaram a simples material de vedação, surgindo a estrutura independente, a fachada de vidro, etc. A curva, a curva generosa que os antigos tanto procuravam, com seus arcos, cúpulas, voûtes e abobadas espetaculares, assumiu uma nova e surpreendente dimensão e com ela os requintes da técnica, o pretendido, as cascas, os grandes espaços livres e balanços extraordinários. Uma arquitetura mais livre e vazada se oferecia a todos os arquitetos.

Infelizmente nada disso aconteceu. Os primeiros croquis cheios de inovação e fantasias foram postos de lado. Surgiram regras, princípios, incompreensões inesperadas e, pouco a pouco, aquele mundo de formas novas se transformou numa arquitetura monótona e repetitiva, fácil de elaborar e construir — a arquitetura racionalista — que nunca poderia exprimir a versatilidade plástica do concreto armado.

Para justificar esse retrocesso incompreensível, muita bobagem foi dita em tom de coisa séria. Uns, falavam de padronização, de arquitetura multiplicável, da sociedade de amanhã que, na realidade nada, politicamente, fizeram para realizar; outros insistiam na importância do conteúdo que o exterior deveria religiosamente refletir como se interior e exterior não fossem coisa única e juntos devessem nascer e se completar. Na verdade a preocupação de contestar os requintes da arquitetura existente tudo comandava e isso criou as limitações de um funcionalismo exacerbado e a falsa pureza arquitetural. E era tal a incompreensão e a leviandade que um dia o Bauhaus, que Le Corbusier dizia ser o “paraíso da mediocridade”, sugeriu estudar uma arquitetura padrão para cada tipo de edifício. As possibilidades do concreto armado foram então esquecidas e a arquitetura se fez neutra e inexpressiva — um simples denominador comum — a servir tanto para as estruturas metálicas quanto para as de concreto armado. Duas técnicas diferentes a exigirem arquitetura também diferente. A primeira, buscando a simplicidade da linha reta e a outra, a curva livre e inesperada, criando surpresas e grandes espaços livres.

Tudo isso já sentíamos lá pelos anos 40, como que vislumbrando o equívoco lamentável, certos de que um dia, como agora ocorre, os arquitetos racionalistas, que toda a fantasia recusavam, procurariam outra opção cansados de se repetirem. E ei-los agora a fazerem prédios modernos — no mesmo apuro como que antes os faziam — neles inserindo da forma mais primária detalhes antigos, velhas lembranças de uma época que desprezavam como coisa superada.

Não os critico. Não critico ninguém. Trata-se de uma pequena aventura já perdida pela Europa, que entre nós prolifera em segunda mão. Uma aventura que dispensa comentários.

É claro que gostaria fosse o meu trabalho útil às classes mais pobres do meu país. Aos nossos irmãos operários que constroem cidades, palácios, apartamentos, escolas e locais de lazer, sem de nada disso participarem.

Não tenho ilusões, nem acredito em obra social realista realizada no regime social existente. Vejo-as paternalistas e demagógicas, fora da escala dolorosa da miséria brasileira. Aos que as reclamam, limito-me a lembrar-lhes que, se a miséria os comove, só na luta política poderão encontrar meios de detê-la.

Pesaroso, lembro como são pobres e desinformados nossos irmãos brasileiros, impaciente ao lembrar as palavras amargas de Guevara: “Povo desarmado não existe.”

Enquanto isso continuo na minha arquitetura, que reflete como não pode deixar de ser, os aspectos positivos e negativos da vida brasileira. E com ela me divirta um pouco, vendo em cada projeto um novo desafio, a possibilidade de realizar meus sonhos e devaneios de arquiteto, consciente da precariedade das coisas e da pouca importância que merece o meu trabalho diante da pobreza imensa que nos cerca.

Mas, como sempre aconteceu, ainda encontro tempo para olhar a vida, abraçar os amigos, questionar este estranho mundo em que vivemos. Um mundo todo feito de flores e de pedras, tão injusto e discriminatório que só na contestação permanente e na luta política, encontramos razão de aceitá-lo.



Fonte.:Folha de S.Paulo

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