
As novas regras para a abertura de cursos de graduação em Medicina no país voltaram a gerar embate no ensino superior privado, com associações criticando a criação de um “desequilíbrio regulatório” e violação da livre concorrência em favor das instituições sem fins lucrativos. A alteração da regra permitiu a abertura do curso de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) após 10 anos de espera.
Representantes de instituições com fins lucrativos, como a Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) e a Associação das Mantenedoras de Ensino Superior (Amies), argumentam que o novo edital cria um tratamento desigual entre as instituições privadas e as Instituições Comunitárias de Educação Superior (ICES).
O cerne do conflito trata sobre a igualdade de oportunidades regulatórias: se o acesso a uma política pública, mesmo em razão de uma função social diferenciada, deve mitigar exigências técnicas que se mantêm rigorosas para o restante do mercado, ou se todos os segmentos que buscam a mesma finalidade devem seguir critérios objetivos uniformes.
O chamamento público é uma espécie de processo seletivo para a criação de novos cursos, conforme critérios estabelecidos pelo MEC, nos termos da Lei do Mais Médicos (Lei nº 12.871/2013), que instituiu o programa. A norma vincula a implantação da graduação em Medicina a locais com menor concentração de médicos.
O edital nº 5, de abril de 2024, prevê que, para participar do chamamento, a faculdade particular e a unidade hospitalar devem ser sustentadas pela mesma mantenedora, utilizando o mesmo número de CNPJ, e ambas precisavam estar sediadas no mesmo município.
Já o edital 15/2025, de setembro deste ano, flexibiliza essa exigência ao permitir que as instituições sem fins lucrativos celebrem um Termo de Parceria com unidades hospitalares de natureza pública ou constituídas como empresa pública no mesmo município, ressalvando, assim, a regra do CNPJ único. A nova regra não prevê uma contrapartida financeira obrigatória para as comunitárias, ao passo que as IES devem repassar 10% do faturamento do curso em benefício da rede pública de saúde para outros processos.
Em nota à Gazeta do Povo, o MEC enfatizou que, para participar do chamamento público, as comunitárias devem firmar um Termo de Parceria com unidade hospitalar de natureza pública no mesmo município, com validade mínima de 15 anos; oferecer serviços gratuitos à população proporcionais aos recursos obtidos do poder público; e manter programas permanentes de extensão e ação comunitária.
A ABMES, por meio do Ofício n.º 45/2025 enviado ao MEC, solicitou que os mesmos critérios flexibilizados aplicados às ICES sejam estendidos às demais instituições privadas para assegurar tratamento equitativo e coerência normativa. Por outro lado, a Amies defende que os critérios mais rígidos impostos às instituições com fins lucrativos devem valer para as comunitárias.
De acordo com a ABMES, a flexibilização das regras cria um desequilíbrio competitivo e barreiras de entrada reduzidas, desalinhando-se da finalidade original de interiorização da política pública. No ofício, a associação aponta que as instituições sem fins lucrativos têm uma série de facilidades em comparação com as IES, como:
- “Possibilidade de parceria com hospitais públicos ou empresas públicas do mesmo município, com mitigação dos critérios antes centrais (necessidade social e percentuais/leitos SUS por vaga);
- “Dilação de prazos para implantação de residências (inclusive com aproveitamento temporário de programas existentes em outros hospitais públicos do município e obrigação de implantação até o 6º ano do curso)”.
Em nota, a secretária-executiva da Amies, Priscila Planelis, afirmou que “não há justificativa técnica ou jurídica” para que apenas as instituições comunitárias recebam prioridade, uma vez que todas, incluindo as privadas e confessionais, oferecem à comunidade benefícios como atendimentos e exames gratuitos. Para ela, “o novo edital contraria o princípio constitucional da isonomia e restringe injustificadamente a livre concorrência entre instituições credenciadas pelo MEC”.
O consultor jurídico da Amies, Esmeraldo Malheiros, afirmou que o novo edital se contrapõe à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 81, que validou a exigência do chamamento público prévio das instituições que queiram abrir novos cursos e vagas de Medicina previsto na Lei do Mais Médicos.
Malheiros destacou que as instituições privadas “se submetem a um rigoroso processo de autorização, que inclui contrapartidas aos municípios, comprovação de leitos SUS na proporção de cinco leitos por vaga de Medicina, e demonstração de relevância e necessidade social, baseada na densidade de 3,73 médicos por mil habitantes”.
MEC defende regras específicas para cursos de Medicina em instituições comunitárias
Em resposta às críticas, o MEC e a Associação Brasileira das Instituições Comunitárias de Educação Superior (Abruc) defendem que o tratamento diferenciado é legalmente justificado. A pasta afirmou que as ICES possuem “natureza sui generis” e prerrogativas específicas em razão de sua função social, o que permite a realização de parceria com o Poder Público para a oferta de serviços de interesse público na área da saúde.
Segundo o ministério, a alteração por meio do edital 15/2025 apenas regulamenta essa possibilidade, já prevista em lei. No caso da PUC-Rio, a pasta ressaltou que, como instituição comunitária qualificada, a universidade “poderá participar do edital, observando todas as exigências”, mas a “habilitação, contudo, não garante a autorização do curso”. Segundo o ministério, “o fato de uma instituição de educação superior ter sido habilitada para o protocolo de processo de autorização de curso de Medicina no MEC não enseja a garantia de autorização do curso”.
“A instituição de educação superior habilitada nos termos do Edital deverá protocolar processo de autorização de curso de Medicina no Sistema e-MEC, que seguirá o fluxo regular dos processos regulatórios dentro do MEC, passando por todas as etapas, incluindo avaliação in loco por comissão de especialistas a cargo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e análise pelo Conselho Nacional de Saúde”, disse a pasta, em nota.
“Comunitárias buscam superávit, mas não vivem pelo lucro”, diz Abruc
O assessor jurídico da Abruc, Dyogo Patriota, argumentou que não há vantagens, mas sim regimes jurídicos diferentes. Ele apontou que as ICES não vivem pelo lucro, reaplicam o superávit em seus objetivos institucionais e são, por disposição legal, a primeira opção para a implementação de políticas públicas em áreas como educação e saúde.
“As comunitárias buscam superávit, mas não vivem pelo lucro, reaplicam tudo em seus custos e em seu objetivo institucional. O comunitarismo não é só um nome, mas é uma ramo de pessoas jurídicas (associações e fundações) que devem ser (por disposição constitucional e legal) a primeira opção para implementação de políticas públicas em diversas áreas, entre elas educação, saúde e assistência social”, disse Patriota à Gazeta do Povo.
Para o assessor jurídico da Abruc, as instituições privadas têm muitas facilidades que as comunitárias não têm. “Elas podem buscar leitos SUS fora da sua cidade, se conveniando com hospitais públicos ou privados. Ao contrário, as comunitárias só podem se conveniar com hospitais públicos de grande porte (400 leitos ou mais) e devem cumprir todos os requisitos na sua cidade sede”, afirmou o advogado.
Flexibilização nas exigências de residência médica
Uma das maiores diferenças introduzidas pelo edital 15/2025 está relacionada aos programas de residência médica, que são cruciais para a qualificação das unidades hospitalares. Pela regra original, a unidade hospitalar deveria dispor de programas de residência médica em no mínimo 10 especialidades, sendo ao menos três prioritárias, no momento da habilitação.
No caso das comunitárias, a mantenedora poderá apresentar a disponibilização temporária dos programas de residência médica oferecidos em outros hospitais mantidos pelo poder público no mesmo município. Essa flexibilidade deve vir acompanhada do compromisso de implantar as residências médicas faltantes na unidade hospitalar parceira até o sexto ano de funcionamento do curso de Medicina.
“As instituições privadas que não são comunitárias permanecem submetidas às exigências rigorosas do Edital nº 1/2023, editado no contexto do Programa Mais Médicos, que demanda, entre outros pontos, demonstração de necessidade social regional, comprovação de percentuais mínimos de leitos SUS por vaga, contrapartidas financeiras relevantes e residência médica implantada desde o início do ciclo autorizativo. Em contraste, as Instituições Comunitárias de Educação Superior (ICES) passaram a se beneficiar de um modelo mais acessível, flexível e menos oneroso”, disse a ABMEs em ofício ao MEC.
Quais são os tipos de instituições de ensino
As instituições de ensino são classificadas de três formas: públicas, privadas e comunitárias, que possuem características distintas, segundo o artigo 19 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
- públicas, assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público;
- privadas, assim entendidas as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado;
- comunitárias.
As instituições privadas e comunitárias também podem ser qualificadas como confessionais, desde que atendidas a orientação confessional e a ideologia específicas, ou como filantrópicas.
O MEC lembrou que a Lei nº 12.881/ 2013 estabeleceu critérios obrigatórios para que uma instituição seja certificada como ICES e, considerando a função social destas entidades, lhes atribui as seguintes prerrogativas:
- ter acesso aos editais de órgãos governamentais de fomento direcionados às instituições públicas;
- receber recursos orçamentários do poder público para o desenvolvimento de atividades de interesse público;
- ser alternativa na oferta de serviços públicos nos casos em que não são proporcionados diretamente por entidades públicas estatais;
- oferecer de forma conjunta com órgãos públicos estatais, mediante parceria, serviços de interesse público, de modo a bem aproveitar recursos físicos e humanos existentes nas instituições comunitárias, evitar a multiplicação de estruturas e assegurar o bom uso dos recursos públicos.
Fonte. Gazeta do Povo


