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- Author, Daniel Gallas
- Role, Da BBC News Brasil em Londres*
O consumo de cocaína nunca foi tão grande no mundo — e esse aumento na demanda pela droga está fortalecendo as facções criminosas por trás do negócio em países como o Brasil, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil e relatórios produzidos por grupos especializados.
No Brasil, o tráfico de cocaína está entre as principais atividades de grupos criminosos como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).
Segundo a ONU, o tráfico de drogas “continua impulsionando o crime organizado e gerando lucros aos criminosos”, e a violência associada a essa atividade aumentou drasticamente nos países de origem, trânsito e destino dos tóxicos.
Um dos grandes propulsores nos últimos anos tem sido o aumento na demanda por cocaína em todo o mundo — sobretudo na Europa.
Nos dez anos de 2013 a 2023, houve aumento de 47% no número de usuários globais de cocaína.
Segundo a ONU, quase todos os indicadores relacionados à cocaína apresentaram aumento — seja de produção, apreensões ou consumo.
Os dados mais recentes são de 2023 e estão presentes no Relatório Mundial sobre Drogas 2025, produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), a agência especializada da ONU, com sede em Viena.
“O número de usuários de cocaína em todo o mundo também continuou a crescer: estima-se que 25 milhões de pessoas usaram a droga em 2023, contra 17 milhões em 2013. Isso representa um aumento na prevalência do uso de cocaína entre pessoas com idades entre 15 e 64 anos, de 0,36% para 0,47% no mesmo período”, afirma o relatório da ONU.
“A América do Norte, a Europa Ocidental e Central e a América do Sul continuam a constituir os maiores mercados de cocaína, com base no número de pessoas que usaram drogas no último ano e em dados derivados da análise de águas residuais.”
A ONU destaca que os principais fluxos de tráfico de cocaína continuam a ser dos países andinos para a América do Norte e para a Europa, seja diretamente ou, em menor escala, através da África Ocidental e Central.
“As apreensões de cocaína relatadas na Europa Ocidental e Central em 2023 excederam as relatadas na América do Norte pelo quinto ano consecutivo.”
Mas o Brasil serviria como uma importante ponte entre os países produtores e os grandes mercados consumidores.
PCC e Comando Vermelho
Existe uma relação direta entre o aumento do consumo mundial e a violência e poder das organizações criminosas como as que operam na América Latina, segundo a ONU.
“O tráfico de drogas continua a impulsionar o crime organizado e a gerar lucros criminosos, e a violência associada aumentou rapidamente em alguns casos, inclusive em países de origem, trânsito e destino”, diz o relatório da ONU.
“A violência relacionada ao tráfico de cocaína tem sido particularmente visível entre grupos criminosos que operam nas Américas.”
Um capítulo especial do relatório da ONU cita as duas principais facções criminosas brasileiras: o PCC e o CV.
Enquanto grandes grupos criminosos costumam ter uma hierarquia de poder mais rígida, os dois seriam exemplos de estruturas diferentes de gestão.
“Outros estudos indicam que grupos de narcotráfico como o PCC e o CV no Brasil exibem um certo grau de hierarquia vertical em toda a organização, com filiais locais operando com estruturas variadas e independência limitada, que alguns consideram semelhante a um modelo de franquia”, afirma o relatório.
Outro relatório mostra a importância do Brasil no suprimento de drogas para a Europa.
O Brasil serve hoje como uma espécie de ponte entre países andinos que produzem cocaína e a Europa, onde está grande parte do mercado consumidor, segundo o relatório “A rota do tráfico de cocaína para a Europa”, produzido pela publicação especializada InSight Crime e pela Global Initiative Against Transnational Organized Crime, uma ONG com sede na Suíça.
“As conexões diretas do Brasil com zonas de produção na Colômbia, Peru e Bolívia, os numerosos portos de contêineres no litoral atlântico e um cenário de crime organizado poderoso e em rápida evolução tornaram o país uma perspectiva atraente para traficantes em busca de novas rotas para a Europa”, diz o relatório.
“O porto de Santos tornou-se um ponto crítico, seguido por outros como Paranaguá e Itajaí. As apreensões, segundo dados da alfândega brasileira, dispararam de 4,5 toneladas em 2010 para 66 toneladas em 2019.”
O estudo de 2021 afirma que “hoje, a principal ponte de tráfico para a Europa não é mais a Venezuela, mas o Brasil”.
“O dinheiro da cocaína transformou o submundo”, afirma o relatório, que destaca o papel do PCC no tráfico internacional da droga.
“Os lucros do tráfico para a Europa permitiram que o PCC concluísse sua transição de uma facção carcerária para um ator transnacional com influência no Brasil, Bolívia e Paraguai.”

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“O PCC já era poderoso, administrando não apenas prisões, mas controlando enclaves criminosos e gerenciando economias criminosas (incluindo a venda de drogas) em vastas áreas do Brasil, especialmente em muitas das favelas.”
Segundo o relatório, o recente crescimento explosivo do PCC aconteceu, em grande parte, ao controle de vários corredores de cocaína, como o da Bolívia, passando pelo Paraguai, até o porto de Santos, “abrindo o que se tornou uma das artérias de tráfico mais importantes para a Europa, segundo a Europol”.
Os pesquisadores também dizem que máfias italianas, como a ‘Ndrangheta, são o principal ponto de conexão com grupos organizados latino-americanos, como o PCC.
A cocaína é traficada para a Europa a partir dos países produtores da América do Sul pelas vias aérea e marítima, utilizando diversos métodos e rotas, segundo dados do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), agência da União Europeia.
As apreensões de drogas vindas da América do Sul vêm batendo recordes consecutivos a cada ano.
Bélgica, Holanda e Espanha representam aproximadamente 73% do total de apreensões feitas.
Segundo a OEDT, as maiores quantidades de cocaína encontradas em apreensões são contrabandeadas para a Europa escondidas em navios de carga, principalmente em contêineres marítimos. Esses navios geralmente partem de Brasil, Colômbia e Equador, e têm como destino grandes portos europeus, especialmente Antuérpia e Roterdã.
Facções mais globalizadas e poderosas
“O consumo aumentou e isso, é claro, também fortaleceu as diferentes organizações”, afirmou à BBC News Brasil Annette Idler, da Blavatnik School of Government, a faculdade de política pública da Universidade de Oxford, e diretora da Programa de Segurança Global do Pembroke College, também ligado à Oxford. Ele é autora de livros e artigos sobre a guerra às drogas na América Latina.
“As facções se tornaram mais globais. O Comando Vermelho, por exemplo, que esteve envolvido nas ações que aconteceram no Rio de Janeiro, fazem parte de uma rede maior. Eles obtêm a cocaína principalmente da Bolívia, mas também fazem parcerias com organizações na África e na Europa. Portanto, eles são mais poderosos em termos de alcance. Isso, é claro, também tem a ver com o aumento do consumo.”
Ela destaca que o Brasil já não é apenas um mero ponto de trânsito de drogas — uma passagem entre países produtores e consumidores — mas também já desenvolveu um mercado consumidor robusto.
“É aqui que vemos a violência. E as ações do Estado também produzem uma espiral de violência.”
Ela escreveu artigos que dizem que a chamada guerra às drogas fracassou. Em parte, segundo ele, porque a estrutura internacionalizada de rede faz com que novos grupos criminosos surjam sempre que um é combatido.
“O que realmente precisa ser feito é transformar a guerra às drogas em algo focado em questão de saúde pública. Porque no final o problema maior é a demanda. A oferta também aumentou, com a produção. Precisamos pensar no que fazer na Europa e nos EUA para reduzir a demanda — e isso está muito ligado à educação. É preciso aumentar a conscientização sobre como o consumo de drogas está ligado à violência nesses outros países.”
Cocaína e território
Para Roberto Uchôa — ex-policial federal, pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública — as facções brasileiras estão lucrando mais com a maior demanda por cocaína na Europa, mas as organizações já diversificaram bastante suas fontes de renda, ao ponto que a cocaína já não é mais a principal atividade dos grupos.
“O consumo de cocaína aumentou muito na Europa e a produção de cocaína aumentou muito na Colômbia. A cocaína hoje está mais barata e numa pureza maior. E a demanda também tem crescido”, disse Uchôa em entrevista à BBC News Brasil.
Segundo ele, o PCC tem hoje uma presença maior do que o CV no fornecimento de cocaína para África, Europa e Oceania — e se tornou a facção que mais se beneficiou com o aumento da demanda por cocaína.
“Hoje o tráfico de drogas em si não é a parte majoritária dos lucros dessas organizações criminosas. Já tem estudos dizendo que o tráfico de cocaína, por exemplo, seria 30 a 40% do rendimento”, diz o pesquisador.
“O Comando Vermelho hoje, por exemplo, também, ganha muito dinheiro no controle de territórios. Não é só tráfico de cocaína. É comércio de gás, gatos de luz, internet clandestina, transporte coletivo — que o Comando Vermelho aprendeu com as milícias.”
“Mas mesmo assim há uma disputa pelo controle dessas rotas de fornecimento de cocaína para a Europa. Tanto que você vê essas brigas no Norte e Nordeste, principalmente pelas rotas de escoamento do Solimões que vem da Amazônia e tudo mais.”
* Colaborou Julia Braun, de Londres
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


