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- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
Um caso raro e sem precedentes na medicina foi identificado no Brasil e pode abrir novas portas para a compreensão da genética humana.
Em todas as células do corpo, Ana Paula Martins tem cromossomos XX — que indicam características sexuais femininas. Mas, especificamente nas células do sangue, ela carrega cromossomos XY — relacionados às características masculinas.
A descoberta aconteceu no início de 2022, após Ana Paula sofrer um aborto espontâneo. Durante a investigação médica, uma ginecologista pediu que a paciente fizesse um cariótipo, um tipo de exame para detectar alterações genéticas.
“É um exame em que você basicamente pega os glóbulos brancos, identifica o material genético dela ali e coloca em forma de cromossomo. No caso dela, veio compatível com um indivíduo do sexo masculino”, explica Gustavo Maciel, ginecologista e professor da Faculdade de Medicina da USP, que participou do estudo envolvendo o caso.
“O laboratório entrou em contato comigo. Eu sou da área da saúde. Ai eu vi [o resultado] e isso me causou um mega impacto. Eu falei: ‘não, tem alguma coisa errada'”, lembra Ana Paula.
O exame apontou a presença de cromossomos XY no sangue da paciente. O resultado deixou tanto Ana Paula quanto os médicos intrigados.
“De fato, eu fui avaliar a paciente e ela era, vamos dizer assim, com todas as características femininas absolutamente normais. Tinha útero, ovário… O ovário funcionava”, destaca Maciel.

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O caso chegou até o médico geneticista Caio Robledo. Ele conta que o que chamou atenção foi o fato da paciente ter tido um desenvolvimento sexual normal, e até mesmo uma gestação, apesar da alteração genética.
“Quando a gente se depara com cariótipo XY em uma mulher, a gente tem várias doenças raras que podem causar essa circunstância. Mas quase todas elas contam com infertilidade e ou com inabilidade do ovário funcionar, tanto para produzir hormônio feminino como para produzir óvulo e consequentemente gestação. Esse cenário seria incompatível com a gestação”, destaca.
Junto com Maciel e outros pesquisadores, Robledo iniciou uma investigação médica, que acabou virando um estudo.
‘Ela tem um pouquinho do irmão circulando nela’
Durante a pesquisa, Ana Paula contou que tinha um irmão gêmeo, e isso foi fundamental para começar a entender o caso.
Ao fazer uma busca na literatura, os pesquisadores identificaram casos de gestações gemelares em outros mamíferos em que a troca de sangue entre irmãos de sexos diferentes era frequente. Foi então que eles resolveram realizar exames em Ana Paula e no irmão gêmeo.
A comparação do DNA dos dois revelou que as células sanguíneas — e apenas as células sanguíneas — de Ana Paula são idênticas as do irmão.
“Na pele, no DNA da boca, no DNA da pele, ela é uma pessoa. O sangue dela, os glóbulos brancos dela, ela é o irmão, exatamente igual ao irmão”, destaca Maciel.
Ana Paula é um caso de quimera, quando há dois tipos de DNA no corpo de uma pessoa.
Apesar de alguns tratamentos gerarem quimerismo, como o de leucemia, quando é necessário fazer o transplante de medula óssea, Robledo afirma que a quimera espontânea “é muito rara”.
“A gente vai lá, faz um tratamento que destrói a medula óssea daquele paciente e leva as células de medula óssea de um outro paciente que vão repovoar a medula, e isso gera uma quimera para tratamento. Esse fenômeno a gente conhece. Agora, quimera espontânea é um fato muito raro.”

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Os pesquisadores suspeitam que, durante a gestação, a placenta de cada um dos gêmeos — Ana Paula e o irmão — teve algum tipo de contato e isso formou uma conexão de vasos sanguíneos que levou sangue do menino para a menina.
Com isso, as células sanguíneas do irmão de Ana Paula recolonizaram a medula óssea dela, que passou a produzir células sanguíneas com cromossomos XY, enquanto o resto do corpo dela seguiu XX mesmo.
“Houve um processo de transfusão que a gente chama de transfusão feto fetal. Em algum momento, houve um entralaçamento das veias e artérias dos dois ali no cordão umbilical. E ele passou todo o material dele pra ela, de sangue. E o mais impressionante é que esse material permaneceu a vida inteira ali”, explica Maciel.
“Então ela tem um pouquinho do irmão circulando nela”, afirma Robledo.
Uma situação como essa nunca havia sido documentada na Medicina — e pode ajudar a entender mais a fundo questões relacionadas à imunidade e à reprodução humana.
“Apesar deles terem uma certa incompatibilidade genética, ela vive bem com o material dele. […] Esse caso dela diz para a gente que pode existir algumas situações em que você tem uma tolerância imunológica que pode abrir perspectivas de investigação para a gente entender mais a questão dos transplantes, por exemplo”, diz Maciel.
Segundo os médicos, pessoas com alterações cromossômicas geralmente têm problemas de fertilidade, como demonstra a literatura.
Mas esse não é o caso de Ana Paula: durante o estudo, ela ficou grávida e o filho dela nasceu bem e saudável.
Uma análise genética feita na criança revelou que o DNA do bebê está dentro do esperado, com metade dos cromossomos vindos da mãe, e outra metade do pai.
“O filho dela não é uma mistura do tio e dela. O filho dela só tem material genético dela e do marido porque o óvulo dela tem o material genético dela. O sangue que circula nela não interferiu”, explica o professor da USP.
Para Ana Paula, foi importante descobrir a causa da alteração genética e, principalmente, que isso não iria interferir em sua gestação.
“Foi um alívio descobrir que isso não era meu, que não era o meu corpo, que estava produzindo, que não era uma coisa que poderia atrapalhar para o meu objetivo, que era ter meu bebê.”
A pesquisa que Ana Paula participou foi conduzida no Fleury, no Hospital Israelita Albert Einstein e no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL