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19 de setembro de 2025

O drama dos estudantes de Medicina que podem não se formar

O drama dos estudantes de Medicina que podem não se formar

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“O que era um sonho se tornou pesadelo”. É assim que a estudante pernambucana Valdenice Ayane dos Santos Lima, de 32 anos, se refere à situação de centenas de estudantes de Medicina como ela. Esses alunos ingressaram em universidades privadas do Brasil nos últimos anos por meio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), mas estão prestes a desistir do curso por dificuldades financeiras e poderão enfrentar dívidas que ultrapassam meio milhão de reais. “Estamos desesperados”, continua a goiana Eduarda Cristina Gonçalves Cardoso, de 22 anos.

Natural do município de Pires do Rio, em Goiás, Eduarda prestou vestibular para Medicina em universidades públicas do país durante quatro anos, mas não conseguiu vaga. “Quando surgiu oportunidade de tentar o Fies, fiquei muito feliz”, relata a jovem, que começou a estudar em uma faculdade privada por meio do empréstimo estudantil de R$ 10 mil por mês. Após a conclusão do curso, esse financiamento será de aproximadamente R$ 720 mil e deverá ser devolvido.

“Mas, além dessa dívida para pagar depois da formatura, já temos uma coparticipação em cada mensalidade”, informa a estudante, ao explicar que o valor para estudar Medicina no Brasil ultrapassa R$ 10 mil por mês, e o aluno que ingressa no Fies precisa pagar a diferença. “O que ninguém esperava é que a coparticipação aumentasse tanto a cada semestre”, diz a jovem.

Segundo ela, seu boleto mensal era de R$ 1.500 no fim de 2024, mas passou para R$ 2.300 no primeiro semestre de 2025. “É um valor muito alto, e se o aluno não pagar, não consegue renovar o financiamento para garantir sua rematrícula na universidade”, esclarece.

“O sonho da minha vida, desde criança, sempre foi ser médica, mas minha família não consegue bancar a coparticipação do Fies”

Ana Carolina Ferreira Cortes, estudante de 23 anos que trancou o curso de Medicina por falta de pagamento

Por isso, Eduarda e muitos colegas precisam trabalhar após a aula de período integral. “Passei meses acordando às 5h20 da manhã para ir à faculdade, estudava até 18h e ia trabalhar na linha de trem de São Paulo depois, mas acabou meu contrato”, conta, citando que tem muito medo de precisar trancar o curso e desistir de seu sonho.

Evasão dos estudantes do Fies chega a 80%, segundo FNDE

“Eu tive que parar, e estou com uma dívida de R$ 120 mil”, relata a baiana Ana Carolina Ferreira Cortes, de 23 anos. Natural da cidade de Jequié, ela mora com a avó, que recebe aposentadoria de um salário mínimo e não tem condições de pagar os estudos da neta.

“O sonho da minha vida, desde criança, sempre foi ser médica, mas minha família não consegue bancar a coparticipação do Fies”, diz, comentando que teve muita dificuldade para quitar, por um ano, boletos mensais de R$ 425. “Pessoas da família se juntaram para me ajudar, mas o valor da coparticipação subiu para quase R$ 900 e ficou impossível.”

Em audiência pública realizada em Brasília na última terça-feira (8) para tratar da situação dos estudantes de Medicina do Fies, um dos diretores do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), André Carvalho, alertou para a complexidade do problema.

“Hoje a inadimplência chega a 60% e a evasão está na casa de 80%”

André Carvalho, diretor de gestão de fundos e benefícios do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)

“Hoje a inadimplência chega a 60% e a evasão está na casa de 80%”, afirmou o responsável pela gestão de fundos e benefícios do FNDE. Os dados se referem a todos os estudantes do programa, totalizando quase 2,5 milhões de contratos ativos.

Segundo ele, a situação precisa ser discutida porque o aluno que desiste sem conquistar seu diploma não alcança o objetivo social proposto pelo Fies e também não tem condições de pagar sua dívida para que o fundo de financiamento estudantil se mantenha.

“A evasão causa uma inadimplência quase insanável”, ressalta. Segundo dados divulgados pelo Ministério da Educação (MEC) em maio deste ano, as dívidas dos beneficiários somam R$ 116 bilhões.

Estudantes de Medicina pedem revisão do “teto” do financiamento

Para evitar a desistência não voluntária dos estudantes de Medicina, cerca de 9 mil alunos se uniram em um movimento online chamado “Fies sem Teto” para solicitar revisão emergencial do valor máximo destinado às mensalidades do curso. Eles também pedem que alunos com coparticipações em atraso possam continuar estudando.

As reivindicações foram apresentadas às equipes do MEC e do FNDE em março deste ano, quando os estudantes foram informados de que o pedido seria avaliado. No entanto, a situação permaneceu inalterada, e uma audiência pública foi realizada pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados na última terça-feira (8) para discutir o tema. O pedido foi do deputado federal Tadeu Veneri (PT-PR).

“O presidente Lula, lá no Complexo do Alemão, de onde eu venho, falou que o filho do pobre poderia voltar a estudar”

João Victor da Silva, presidente do movimento “Fies Sem Teto”

“Somos alunos que não têm condições de pagar uma universidade privada de Medicina”, disse o estudante João Victor da Silva durante a audiência pública. Presidente do movimento “Fies Sem Teto”, o estudante do 7º período de Medicina afirmou que sua família reside no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro, e que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu em campanha eleitoral pela região que jovens de baixa renda teriam oportunidade de ir para a universidade.

“O presidente Lula, lá no Complexo do Alemão, de onde eu venho, falou que o filho do pobre poderia voltar a estudar”, disse o rapaz.

No entanto, de acordo com ele, a situação atual do Fies inviabiliza essa chance e tem transformado em pesadelos os sonhos de milhares de jovens brasileiros. “Se esse teto não aumentar, no próximo semestre, eu e muitos colegas não vamos continuar estudando.”

À Gazeta do Povo, João Victor relatou que vende marmitas na universidade para pagar sua coparticipação de R$ 2.055. “E minha mãe e minha vó estão me ajudando”, relata o carioca, que estuda em uma universidade da Bahia e precisou trancar o curso durante seis meses para trabalhar. “Paguei minha dívida, voltei a estudar, mas não estou conseguindo mais pagar”, confidencia o rapaz. “Se o teto não aumentar, possivelmente terei que abandonar meu sonho de ser médico e ficarei endividado”, diz.

MEC afirma que está avaliando a situação

Em nota, o MEC informa que o teto de R$ 60 mil por semestre para cursos de Medicina é estabelecido pela Resolução nº 54/2023 do Comitê Gestor do Fies e “busca equilibrar a ampliação do acesso ao ensino superior com a sustentabilidade financeira do fundo”. Além disso, o ministério aponta que o valor máximo previsto evita o “superendividamento dos estudantes”.

No entanto, a pasta adianta que o Comitê Gestor do Fies (CG-Fies) está analisando uma “possível revisão do teto de financiamento” e que “o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) segue monitorando a evolução dos custos do ensino superior para considerar eventuais ajustes futuros”. Atualmente, há 79.499 contratos do Fies ativados para o curso de Medicina.

“Já vendi todos os móveis que eu tinha, e não sei mais o que fazer”

Valdenice Ayane dos Santos Lima, estudante de Medicina pelo Fies

Para a estudante Valdenice, do município de Betânia, interior do Pernambuco, o governo precisa “tornar o programa realmente social para o pobre” e monitorar aumentos excessivos nas mensalidades exigidas pelas universidades.

“Eu, por exemplo, consegui a vaga no Fies quando a mensalidade custava R$ 10.890, mas, de um semestre para o outro, o valor subiu mais de R$ 1 mil”, relata a filha de agricultores e mãe solo, que está com cinco coparticipações atrasadas e precisa realizar o pagamento este mês para manter sua vaga na universidade.

“Já vendi todos os móveis que eu tinha, e não sei mais o que fazer”, lamenta. “Eu e os colegas só queremos nos formar para ajudar a população e nossa família, então nos deixem estudar”, finaliza.



Fonte. Gazeta do Povo

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