Em 2023, eu tive a oportunidade de integrar o coletivo que realizou uma montagem de “O Guarani” questionando, na visão indígena, a versão instituída ao longo de todo o século 20 até agora.
O fundamento que norteou esta montagem foi a invocação do pensamento indígena, assim como a do corpo indígena. Esse corpo indígena deveria questionar Peri, aquele sujeito solitário, imerso numa realidade colonial. Assim, nós decidimos dar a ele uma família: o povo de Peri seria os Guarani do Jaraguá.
Ali, dava-se início a um verdadeiro ato psicomágico e político. A ópera não seria apenas mais uma experiência estético-musical, mas um dispositivo de mudança na realidade histórica para os povos indígenas.
O Jaraguá tinha um reclamo: “O Jaraguá é terra indígena”. Até que, presentes no palco do Municipal, eles estenderam uma faixa pedindo demarcação já, sendo acolhidos pelo público após cada uma das apresentações nas escadarias do teatro e em uníssono clamando pela demarcação do Jaraguá.
O reclamo foi atendido por decreto federal no final de 2024. De todos os desdobramentos, reconhecimentos e premiações que esta montagem teve, o mais definitivo deles é sem dúvida a homologação da terra Guarani.
É inegável o contentamento de poder realizar agora, em 2025, esta remontagem. Mesmo tendo sofrido críticas prévias à estreia da ópera, tivemos casa lotada todos os dias durante a temporada, inclusive em récita extra. Isso prova o anseio do público de espetáculos oferecidos em espaços como o Theatro Municipal de São Paulo por inovação no campo das artes cênicas.
Sobre o mármore e a murta escreveu o Padre Vieira, dando conta das metamorfoses expressas na inconstância da alma selvagem. E evoco outro mito aqui, o Narciso grego, para referir a esse Peri, de José de Alencar, que é o personagem central da ópera de Carlos Gomes, “O Guarani”, de par com Cecilia ou Ceci.
Um sujeito abstraído de seu mundo torna-se presa fácil dessa narrativa que imprime o corpo indígena em mente deslizante ao sabor dos acontecimentos da história. Sem um povo, vaga Peri entre mundos coloniais que, de pronto, vão ser estranhados por antropofágicos da Semana de 1922, que viam nesta trama uma invenção colonial de um insustentável mito de origem. Ópera de encomenda de Dom Pedro 2°, interessado em criar uma representação europeia da formação dos brasileiros a partir da conversão dos nativos do Novo Mundo.
Como afirma Ligiana Costa, dramaturgista da montagem: “Quanto ao mito do casal primordial, este se constitui a partir do sacrifício de ambos os protagonistas. Peri deve abrir mão de sua espiritualidade e de seu povo para submeter-se a um batismo católico e Ceci deve despedir-se definitivamente de sua família e cultura”.
Um século depois, artistas indígenas se debruçam sobre a imagem instituída e nela nada veem que reflita a longa jornada de construção deste “homo brasilis” e decidem lhe dar um duplo de carne e osso, rasgando a imagem refletida no espelho d’água, pois a água virou veneno.
Avanheé, o outro que agora fala e pensa outros mundos possíveis, onde seres humanos e não humanos tecem sociabilidades, reconhecem suas multiplicidades e reivindicam afetos além do mundo da mercadoria.
Pedras e plantas fazendo planeta, em unidade imprevista no estreito caminho colonial. Nessa nossa releitura da obra, invocamos a pouco lembrada movimentação dos pajés Tupi que lideraram no século 17 a prática de “desbatismo”, que consistia na liberação dos indígenas catequizados pelos jesuítas, resultando num movimento de revolta contra a imposição dos ritos católicos e a instituição dos aldeamentos pela coroa portuguesa.
O “desbatisamento” de Peri é acompanhado do resgate dos Aimoré, que no libreto são difamados enquanto vilões e, nesta montagem, assumem o lugar da própria floresta, embargando o avanço predatório movido pelos colonos.
O desafio de tocar essa pedra, como diria Drummond, no meio do caminho, foi pretexto para convidar o arte-ativista Denilson Baniwa com sua coragem inventiva a tocar o mármore e fazer faíscas: movendo e projetando imagens, institui novos imaginários, em que as figuras consagradas dos cantores são transfiguradas em seres híbridos de pó, sem perder sua indispensável função narrativa na ópera em curso. Raios e tempestades adentram o templo das artes e confirmam o que vaticinou Cibele Forjaz à frente da direção de cena: “Sem trabalho não tem ARTE, arte é trabalhar sobre a pedra”.
Tocar esse totem é transcender o cotidiano duro e resistente a mudanças que grita ao nosso redor, “fazer falar o papel” —o texto em movimento a serviço dos sentidos criando campos de força e afetos. Uma radicalidade no termo, para afirmar a presença feminina na montagem desta ópera, que conta com a maioria de mulheres na condução e realização deste magnífico espetáculo em cena no palco.
Além da presença do Coral e Orquestra do Jaraguá Kyre’y Kuery, esta montagem põe no palco Zahỳ Tentehar, que reescreve num canto autoral o fim desta trama.
Fonte.:Folha de S.Paulo