
Crédito, Arquivo Fudarpe
- Author, Adriana Amâncio
- Role, De Recife (PE) para a BBC News Brasil
“O meu maior prazer é repassar o que aprendi para as outras”, diz Maria dos Prazeres de Souza, de 86 anos, uma das mais antigas e experientes parteiras do Brasil.
Com mais de 70 anos de partos tradicionais e mais de 5 mil bebês trazidos ao mundo, em Pernambuco, a frase acima resume outra parte importante do seu legado: a rede de pupilas a quem ela vêm ensinando “o dom de aparar menino”.
As Pupilas das Prazeres são mais de 200 mulheres, vindas de todas as regiões do Estado de Pernambuco, que têm preservado a tradição do parto natural.
A formação dessas mulheres ocorre através de vivências práticas, encontros e reuniões, realizadas na casa da própria Prazeres, em projetos sociais ou em associações como a das Parteiras Tradicionais e Hospitalares de Jaboatão dos Guararapes, da qual Dona Prazeres é presidenta.
Na segunda metade da década de 1980, na gestão do governador Miguel Arraes (PMDB), Prazeres atuou como gestora do Projeto Comadre, direcionado à garantia de direitos básicos às mulheres em condição de vulnerabilidade, com pouco ou nenhum acesso à renda.
“Eu passava nas residências, orientava as mulheres sobre como atuar em partos naturais. Nunca houve um óbito nas casas que visitei”, orgulha-se. Somando essas mulheres capacitadas nos projetos, afirma Prazeres, são mais de 2 mil, todavia atuando como parteiras são cerca de 200.
Por pouco Dona Prazeres não seguiu outro destino. Diferente de muitas de suas pupilas, ela nasceu em uma família indígena, que não tinha a tradição do partejar. “Quando fui adotada por uma mãe que era parteira, aí sim, eu passei a conviver com essa tradição e fiz o meu primeiro parto, aos 15 anos”, informa.

Crédito, Eduardo Queiroga/ Acervo Museu da Parteira
Uma das pupilas, Maria Fernanda da Silva, 53 anos, nasceu em uma casa onde era comum ver mulheres dançando o balé das contrações e cabeça de menino coroando. “A minha trajetória começa acompanhando a minha mãe, fazendo chá, acompanhando a gestante durante o trabalho de parto, vendo o parto.”
Fernanda tinha 12 anos quando realizou o primeiro parto.
“Essa mulher morava numa Serra e veio para a casa da minha mãe, que já tinha feito outros partos dela. Como a minha mãe tinha saído, eu fiz o parto. Quando o meu pai chegou, já estava tudo resolvido”, relembra.
Nos anos 1990, ela participou de formações com Dona Prazeres e aperfeiçoou o dom herdado da mãe.
“Dona Prazeres costuma dizer que eu cheguei tão novinha para a casa dela, que ainda fiz xixi no colo dela (risos). Além de ensinar a questão técnica, ela me ensinou a acolher, a estar presente, trazer a humanização que ela [a parturiente] tanto merece, levando adiante a profissão e essa sabedoria popular”, resume.
O trabalho das parteiras tradicionais é essencial, especialmente para as mulheres que vivem em áreas remotas, praticamente sem acesso a hospitais. Essa responsabilidade faz com que muitas delas tenham dedicação total, fiquem de atalaia de noite e de dia.
Fernanda chegou a percorrer 2 horas e meia de caminhada em terreno íngreme para realizar o parto de uma mulher no cume da Serra de São Bento. “O hospital mais próximo dessa mulher ficava a umas 3 horas, ela teria que descer a serra em uma rede ou lençol, pois não passa carro”, explica.
Alguns anos depois, ela se formou em enfermagem obstetrícia e passou a atuar em hospitais, também inspirada pelo legado da mestra Prazeres.
“Ela me mostrou que, como enfermeira, eu posso atuar, levando para a mulher o melhor que eu podia oferecer dentro do hospital”, reforça.
Desde que passou pelas mãos da Prazeres, nos anos 90 até aqui, a parteira avalia que muita coisa mudou.
O aplicativo de troca de mensagens WhatsApp, por exemplo, tem sido um aliado no acompanhamento das gestantes. “O zap é muito útil, pois permite conversar o tempo todo com a gente, saber como ela está, o que está fazendo. Se ela tiver um sangramento, expelir o muco, manda a foto, a gente já olha e avalia e toma providência. Tudo isso sem custo”, pontua.
Hoje, Fernanda já soma mais de 2 mil partos naturais. É presidente da Associação de Parteiras Tradicionais do Agreste, que tem 27 integrantes vindas dos municípios de Caruaru e das redondezas. Ela vem repassando o conhecimento para outras pessoas. Já treinou uma prima, uma irmã e colegas de profissão. A motivação para o trabalho segue a mesma: “É um dom! Você não escolhe, você é escolhido”, arremata.
‘Aprendi o que é períneo’

Crédito, Eduardo Queiroga/ Acervo Museu da Parteira
Severina Bezerra, de 71 anos, conhecida como Mainha Naninha, é uma das mais longevas integrantes da rede. Não tem a conta certa, mas acredita que já trouxe ao mundo mais de 3 mil bebês. Ela conta que Dona Prazeres ensina as parteiras tanto a sabedoria tradicional, quanto o conhecimento técnico, combinação que ela pôs em prática quando realizou o parto da própria filha.
“A minha filha teve contração, a gente correu para o hospital, botaram ela no quarto, eu fiz o parto e quando médico chegou o bebê estava amamentando”, afirma, orgulhosa e completa: “Peguei uma tesoura, cortei a placenta com cuidado para não romper o períneo. Eu descobri o que era períneo com a Dona Prazeres”, afirma.
O períneo é uma região localizada entre o ânus e a vagina que tem a função de sustentar os órgãos pélvicos, a exemplo da bexiga e do útero. Unindo saber ancestral, observação e conhecimento técnico sobre a reprodução das mulheres, o parto natural vem resistindo em meio à propagação das cesarianas — procedimento cirúrgico recomendado nos casos em que o parto natural não é viável.
Dados do Ministério da Saúde, publicados pela Universidade de São Paulo (USP) em artigo que indica que o Brasil tem o segundo maior número de cesáreas no mundo, revelam que anualmente são realizados 3 milhões de partos no país, sendo que 1,68 milhão são cesáreas. Desse total, 870 mil são realizadas sem recomendação médica. Entre os meses de janeiro e outubro de 2022, foi registrado um aumento de 57,6% no número de cesáreas, diz outro trecho do texto.
Na Grande Recife, em Pernambuco, a realidade é semelhante. Há mais de uma década, a taxa de cesarianas supera o total de partos normais. Segundo o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), 52,04% dos partos nessa região são cirúrgicos. As cesarianas são essenciais para salvar a vida da mulher e do bebê em casos de partos de risco, mas esse excesso de procedimentos sem indicação é resultado de uma cultura de medicalização excessiva do parto, medo da dor, preferência por ter um médico específico auxiliando no parto, entre outras causas.
Recorrer a essa prática sem indicação necessária pode trazer riscos à paciente, afirma a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). As mulheres podem ter complicações nos próximos partos, sangramentos intensos, recuperação mais lenta, atrasos no início da amamentação e no contato pele a pele com o bebê, assegura a organização.
O estudo sugere que experiências de parto desenvolvidas com apoio de movimentos sociais “parecem contribuir para experiências mais igualitárias entre as mulheres e os profissionais de saúde”.
Um exemplo dessas experiências é a rede de Pupilas da Prazeres, que vem assistindo mulheres sem acesso à rede hospitalar ou que facilmente cederiam à tentação de realizar uma cesariana sem necessidade comprovada por um ou mais médicos.

Crédito, Eduardo Queiroga/ Acervo Museu da Parteira
O chamado para povoar mundo não tem hora
Além da longevidade e do grande número de partos sem óbitos, a disposição diligente de Dona Prazeres é uma marca da sua trajetória que a sagrou com uma das parteiras mais importantes do Brasil. Certa vez, relembra, o médico chamou uma enfermeira para realizar um parto de uma mulher que estava em um quarto de difícil acesso dentro de uma casa abandonada.
“Ela [a primeira enfermeira convidada] se recusou, então, eu fui. Tinham três policiais. Eu entrei pela janela do primeiro andar depois de subir de corda. Fiz o parto, depois desceu um policial com o bebê, outro com a mulher parida e o outro comigo”, relata eufórica.
Para Prazeres, compartilhar conhecimento aumenta as chances de preservar a saúde da mulher.
“Eu trabalho esses anos todinhos e ainda me sinto na obrigação de ensinar as parteiras e qualquer pessoa que possa agir para evitar a morte de uma mulher em qualquer complicação. Saber identificar um líquido amarelo, o tipo sanguíneo da mulher, pois se for Rh Negativo, precisa tomar uma vacina dentro de 72 horas”, observa.

Crédito, Eduardo Queiroga/ Acervo Museu da Parteira
Ela conta que certa vez enfrentou um homem armado para prestar assistência a uma mulher em trabalho de parto.
“A gente não conhecia esse homem e sempre que a mulher gemia com a contração, ele puxava o cabelo dela, beliscava e dizia ‘quando minha mãe ia parir, só se ouvia o grito do menino’. Eu deixei ele esbravejar, esbravejar, depois disse, pronto, ‘agora, pare! fique calado que quem manda sou eu’ e fiz o parto da mulher”, recorda.
Em outra situação, ela precisou furar um bloqueio policial em um protesto para realizar o parto no Suvaco da Cobra, uma comunidade da periferia que liga o Cabo de Santo Agostinho, município da Região Metropolitana, ao Recife.
“Os policiais bloquearam o acesso ao bairro, e disseram ‘minha senhora, não pode passar’. Eu disse, vocês estão batalhando pela segurança e eu estou batalhando pela vida e furei o bloqueio. Me seguraram, veio uma policial mulher e disse ‘a senhora me pegou, eu tô lhe reconhecendo’ e eu passei pra fazer o parto”, relembra.
Dona Prazeres foi condecorada, em 2013, com o Prêmio Bertha Lutz do Senado da República e é uma dos Patrimônios Vivos de Pernambuco.
Muitas das mulheres que aprenderam ou aperfeiçoaram o seu ofício de partejar ao cruzar os caminhos da velha e sábia parteira têm a sua história guardada e disponível ao público no Museu da Parteira, que reúne imagens, documentos e estudos, e realiza exposições itinerantes em eventos e espaços públicos.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL