A Rebelião de Stonewall, ocorrida em 1969, em Nova York, foi um ponto de virada na luta pelos direitos civis da população LGBTQIAPN+.
Mais de meio século depois, o sistema de saúde ainda enfrenta o desafio de oferecer cuidado técnico, ético e verdadeiramente acolhedor a todas as expressões de identidade e gênero. Nesse cenário, a medicina diagnóstica tem assumido um papel central na promoção de práticas mais inclusivas.
Os laboratórios clínicos são, frequentemente, a porta de entrada para o cuidado em saúde, o que torna ainda mais urgente que estejam preparados para acolher com competência técnica e respeito ético as pessoas trans e não binárias.
Em 2019, foi elaborado o documento “Medicina Diagnóstica Inclusiva: cuidando de pacientes transgênero”, um posicionamento pioneiro construído de forma colaborativa entre especialistas em patologia clínica, endocrinologia, radiologia e direito.
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O texto propunha mudanças objetivas e necessárias:
- Adoção do nome social nos sistemas laboratoriais;
- reconhecimento das limitações do binarismo de gênero na interpretação de exames;
- revisão dos intervalos de referência laboratoriais em pacientes em uso de terapia hormonal;
- e a garantia de respeito e privacidade durante todo o atendimento, da recepção à entrega do laudo.
Naquele momento, foi reconhecido que o modelo tradicional de atenção à saúde precisava ser repensado. O paciente não pode ser reduzido a categorias fixas de masculino e feminino. O cuidado precisa ser personalizado, centrado na pessoa, e livre de discriminação.
Cinco anos depois, as instituições envolvidas no projeto estão revisando o conteúdo do documento. Mais do que uma simples atualização de linguagem ou inclusão de termos, a iniciativa reflete a natureza dinâmica do conhecimento técnico e das necessidades em saúde.
A inclusão não é um favor: é um critério de qualidade. Um laboratório que ignora as especificidades de pessoas trans está vulnerável a erros de diagnóstico e a violações éticas.
Entre os principais pontos em revisão estão a incorporação de novas diretrizes nacionais e internacionais para o acompanhamento hormonal, o rastreamento de cânceres (como mamografia e PSA em pessoas trans), e a atenção integral à saúde sexual.
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O trabalho também propõe aprimoramentos nos sistemas laboratoriais, com a separação técnica e cuidadosa entre sexo legal, sexo biológico (para fins laboratoriais) e nome social. A estruturação desses dados em sistemas LIS e HIS integrados exige sensibilidade e rigor técnico.
Outro aspecto fundamental é a atualização da linguagem institucional. A sigla LGBTQIAPN+ passou a representar, com mais precisão, a diversidade de identidades e orientações existentes, e deve ser usada com responsabilidade pelas instituições de saúde.
Também se propõe a inclusão de diretrizes de comunicação mais inclusivas, desde a sinalização física dos ambientes até os laudos e canais digitais.
Essas mudanças dialogam com padrões internacionais de qualidade. A nova versão da norma ISO 15189:2022, voltada para a qualidade em laboratórios clínicos, e os critérios do Programa de Acreditação de Laboratórios Clínicos (PALC) já exigem que políticas de inclusão estejam formalizadas, avaliadas periodicamente e centradas nas necessidades da pessoa atendida.
No entanto, nenhuma política se sustenta sem pessoas que a coloquem em prática. O cuidado inclusivo precisa ser vivido por toda a equipe dos laboratórios: recepcionistas, técnicos de coleta, biomédicos, farmacêuticos, patologistas clínicos – todos devem ser capacitados não apenas com protocolos, mas com formação ética e humana.
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Para isso, recomenda-se a realização de treinamentos regulares sobre identidade de gênero e diversidade, a produção de materiais técnicos voltados à adequação de intervalos de referência em terapias hormonais, e ações visíveis de acolhimento, como cartazes informativos e orientações internas.
Incluir, nesse contexto, não é apenas um gesto de responsabilidade social: é uma exigência técnica, uma atitude ética e um dever institucional.
Quando falamos de orgulho LGBTQIAPN+ na medicina diagnóstica, estamos dizendo que toda pessoa merece cuidado com dignidade, segurança e respeito. Isso não é apenas um ideal – é uma obrigação técnica e institucional.
O processo de revisão do documento está em andamento e deve ser publicado em breve, reforçando o compromisso da medicina diagnóstica brasileira com a equidade, a ciência e os direitos humanos. Um passo necessário para garantir que, na prática, o orgulho LGBTQIAPN+ também seja cuidado.
*Luiziane Maria Falci Vieira é médica patologista clínica e membro da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML). Coordenou o documento Medicina Diagnóstica Inclusiva: cuidando de pacientes transgênero.
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Fonte.:Saúde Abril