[RESUMO] A música revela elementos sobre a identidade nacional brasileira. Sucesso de ritmos —como a polca no começo do século 20 no Rio de Janeiro— indicam desejos ocultos de classes sociais. Por trás de gêneros musicais e letras de canções, há sempre algo a ser dito sobre o Brasil.
A música brasileira é sempre um mistério a ser desvelado. Talvez seja esse o fator que confere riqueza ao maior patrimônio cultural do país, o elemento estético mais potente na construção de amálgamas identitárias, ainda que regionalistas. É, aliás, a confluência das múltiplas tradições que formam o Brasil, esse gigante diverso em que um gaúcho não se reflete no espelho manauara. Os ritmos denotam quem somos, quem pretendemos ser.
Nos últimos meses, foram lançados dois projetos audiovisuais que narram o Norte: a série “Pssica” (Netflix) e o filme “O Último Azul”. São narrativas diferentes, mas que exaltam a estética do Pará e do Amazonas, respectivamente.
Sem querer causar conflitos —sei bem que há rivalidade entre os dois estados e que ambos possuem particularidades estéticas—, há pontos em comum na musicalidade nortista. O carimbó, que tem conquistado os brasileiros nos últimos anos, e o brega são estilos importantes da região.
As duas produções são recheadas das mais diversas canções destes gêneros, das mais experimentais à música de zona, para deixar claro de que identidade estão falando.
Em “Pssica”, escuta-se Gaby Amarantos cantando “Ilha do Marajó (Gira a Saia)”. A composição de Mestre Verequete é um elogio, primeiro, ao lugar homônimo, e também ao ritmo. “A Ilha do Marajó tem grande população / Aonde nasceu o carimbó no tempo da escravidão”, diz um trecho da letra.
É preocupação legítima dos compositores exaltarem suas origens, influências. Da Bahia ao Rio Grande do Sul, ninguém deixa de fazer tais marcações. Para curar as feridas da escravidão, as tradições negras são as mais exaltadas pela arte popular.
Não é para menos. A diáspora trouxe indivíduos de distintos lugares da África, todos ricos em suas culturas. É desnecessário dizer que esse legado casou-se com a cultura indígena e com o mais lindo dos idiomas latinos. Tudo à base da violência, claro.
Mas as influências estão sempre a serem produzidas e, então, reveladas. Em um artigo publicado em 2013, a musicóloga Cristina Magaldi mostra como as populares polcas da belle époque europeia dominaram os salões da burguesia carioca no começo do século 20. Compravam-se as partituras na Europa para reproduzir aqui.
A chegada de imigrantes europeus também impulsionou o sucesso da polca. Depois, compositores brasileiros se animaram a explorar o gênero, como Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, inclusive pela necessidade de suprir a demanda.
Logo entraram instrumentos comuns na música local. É curioso notar que o compasso 2/4, com sequências de semicolcheia, colcheia e semicolcheia, era quase regra nas polcas, assim como é no chorinho. Essa é a gênese do choro.
Magaldi, inclusive, relaciona esse sucesso à urbanização do Rio —o bota-abaixo iniciado em 1903. Música é paisagem. E ao transformar o cenário da cidade, esperava-se que ela adquirisse clima “cosmopolita” que desse conta das ambições políticas: se tornar Europa, branca. A polca, portanto, se tornou a trilha sonora de um projeto estético.
Mas o negócio se tornou tão popular que gerou instabilidades políticas no Brasil. Em 26 de janeiro de 1914, a então primeira-dama, a musicista Nair de Teffé, esposa de Hermes da Fonseca, interpretou ao violão o “Corta Jaca”, de Chiquinha Gonzaga. Era um tradicional sarau no Palácio do Catete, então sede do governo brasileiro.
Estavam presentes autoridades e o corpo diplomático do país. Ao saber da performance, o senador Rui Barbosa se irritou. Afinal, era uma clara violação ao seu projeto estético de país. Em pronunciamento em 7 de novembro de 1914, o parlamentar disse:
“Por que, sr. presidente, quem é o culpado, se os jornais, as caricaturas e os moços acadêmicos aludem ao ‘Corta Jaca’? Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o ‘Corta Jaca’ à altura de uma instituição social. Mas o ‘Corta Jaca’ de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, sr. presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o ‘Corta Jaca’ é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!”
Coisas do Brasil!
Apesar da revolta de Rui Barbosa, Magaldi aponta o ritmo como algo das elites. Para ela, as classes médias urbanas de diferentes cidades do mundo se conectavam mais entre si do que com as periferias. O pequeno burguês do Rio teria mais afinidades com um semelhante parisiense.
As políticas do bota-abaixo e a explosão da polca foram projetos de negação da brasilidade. Porém, num paradoxo, constituintes da própria identidade nacional. Ser o outro, inspirar-se nas tendências das grandes economias, são sintomas de nações marcadas pelo capitalismo tardio.
O que Nelson Rodrigues chama de “vira-lata” é, infelizmente, elemento de brasilidade. Pelo menos de certa parcela identitária. Daí justifica-se o bolsonarismo e a grande realização da classe média, viajar à Disney.
Essa condição é compartilhada por nossos vizinhos, como a Argentina. Mas mesmo a negação é incontornável. Para a psicanálise, o recalcado, ao negar, admite pelo simples ato de nomear a rejeição. Esse fenômeno, o recalque, faz parte da síntese do Brasil, e Machado de Assis expôs isso muito bem.
No brilhante “Um Homem Célebre”, o escritor conta a história de Pestana, um compositor de polcas que sonha em se tornar um grande compositor de música erudita, como Beethoven. De fato, a personagem era estrela das noites cariocas. Todos queriam escutar suas polcas, mas isso era frustrante para ele.
Um dia, gozando de intensa inspiração, sentou-se ao piano para compor e de lá saiu sua melhor composição, a mais sublime. Pelo menos, era isso que acreditava ser. Até que Maria, sua esposa, questiona: “Não é Chopin?”. Era Chopin. O compositor, desejando se tornar europeu, só poderia ser brasileiro. Só lhe restava, nas palavras de Rui Barbosa, “a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque do cateretê e do samba”.
A literatura serve também para investigar esses elementos constituintes da estética nacional. O novo livro de José Miguel Wisnik, “Viagem do Recado”, discute essas e outras intersecções em ensaios riquíssimos. O texto inicial, “Chopin e o Domínio do Piano”, aborda muitos temas interessantes sobre a vida do compositor polonês. É instigante a influência dele sobre o genial Tom Jobim e o já citado Nazareth.
Diz Wisnik: “Quando o acusavam de americanizado, Jobim dizia-se influenciado por Chopin, como Nazareth. No canto de João Gilberto, por sua vez, que trabalha sobre um repertório tonal popular comum, mas através de uma rede precisa de nuances mínimas em múltiplos níveis (entoativos, rítmicos, timbrísticos, harmônicos, contraponto voz/instrumento), reencontramos os enigmas da música a um tempo ‘superficial’ e ‘profunda’. Podemos dizer que, entre esses artistas da música popular brasileira, vigorou algo daquela condição singular vivida por Chopin na primeira metade do século 19, quando circulou pelo campo do emergente mercado musical negociando intimamente com ele um lugar à parte, exigente, profundo e sem data”.
No ensaio “A Longa Arte de Antonio Carlos Jobim”, publicado na revista piauí, Arthur Nestrovski discute o complexo cancioneiro do compositor, que bebe de diversas fontes, assim como o próprio Brasil. Wisnik compara o “Prelúdio em Mi Menor, opus 28, número 4″, de Chopin, com “Insensatez”. Ambos insistem em fazer samba de uma nota só na melodia, enquanto a harmonia segue em digressão.
Apesar da inspiração, há algo na batida do violão, no português, na percussão sincopada e na flauta que fazem com que a canção seja rica em brasilidade. Por isso Nestrovski diz que as 211 partituras catalogadas de Jobim não devem “em nada aos maiores compositores clássicos, como Schubert e Schumann (para ficar em dois gigantes da canção do romantismo), ou Chopin (um dos maiores gênios do repertório pianístico), sem falar em Villa-Lobos, sua maior referência”.
Se Jobim olhou para a música escrita para compor música popular, Villa-Lobos fez o processo inverso. O compositor modernista buscou ritmos populares, indígenas e negros em um movimento etnomusicológico. Movimento que permitiu a criação da “Melodia Sentimental”, das “Bachianas Brasileiras”, do “Prelúdio Nº 1 em Mi Menor para Violão” e tantos outros temas mais.
Em um ensaio para a Folha, o crítico Sidney Molina analisa como a música popular brasileira foi usada no filme “Ainda Estou Aqui” para construir sua narrativa. Em uma passagem, diz que a música popular é para os brasileiros o que poderia ser a literatura para os russos ou o cinema para os estadunidenses.
É uma comparação feliz. Prova disso era a extensa e plural discoteca de Lélia Gonzalez. Em 2024, o Sesc Vila Mariana homenageou a antropóloga com a exposição “Lélia em Nós: Festas Populares e Amefricanidade”.
Entre os objetos de estudo, as curadoras Glaucea Helena de Britto e Raquel Barreto expuseram a coleção de discos de vinil dela. Lembro-me de explorar com entusiasmo os títulos exibidos e escutar algumas canções —havia fones de ouvido disponíveis para o público. A mostra acompanhou o relançamento do livro “Festas Populares no Brasil”. A música ouvida por Lélia, portanto, serviu como base de seu pensamento social.
Perdemos recentemente um dos nossos maiores compositores, o bruxo Hermeto Pascoal. Contrariando seu nome, que indica algo perfeitamente fechado, Hermeto desvelou a sonoridade do Brasil e o Brasil de sua sonoridade. Este texto é dedicado a ele.
A música é o inconsciente do Brasil, preparada para desvelar seus desejos, seus conflitos e suas memórias.
Fonte.:Folha de S.Paulo


