Walt Disney World, Universal Orlando e SeaWorld. Antes o kit básico de viagem para os Estados Unidos incluía o visto B2 com validade de dez anos e ingressos para os parques temáticos. Hoje, ele vem com novos itens indispensáveis: um celular descartável sem dados sensíveis (sem fotos, redes sociais ou mensagens que possam soar antipáticas a Trump), um notebook antigo sem histórico digital, e os contatos da embaixada brasileira —precaução útil diante da possibilidade de detenção na fronteira. Também é recomendável portar cópias impressas de documentos como reserva de hotel, passagem de retorno e seguro-viagem.
Além disso, é preciso estar preparado para responder, em inglês, a uma série de perguntas sobre os seus interesses pessoais (não mostre inclinação para políticas climáticas ou de igualdade e inclusão), a sua orientação sexual, ou sobre o roteiro e os vínculos com o país de origem. Tenha cuidado para não ser confundido com um “imigrante disfarçado”.
É muita ansiedade. Canadá, Reino Unido, Alemanha, França, Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Países Baixos, Portugal, entre muitos outros países, têm emitido alertas de viagem para os Estados Unidos, recomendando cautela aos seus cidadãos devido ao endurecimento das políticas migratórias sob a atual administração norte-americana, refletidas nas mudanças nas normas de entrada e no aumento de detenções arbitrárias.
As retenções extrajudiciais, segundo dezenas de relatos pessoais divulgados pela imprensa internacional, podem se estender por várias semanas. A ICE (Immigration and Customs Enforcement), agência responsável pelo controle migratório, administra cerca de 200 centros de detenção espalhados pelos EUA.
As novas políticas fronteiriças dos EUA revelam práticas típicas de Estados repressivos e autoritários: controle de dados pessoais, detenções sem acusação formal, racismo institucionalizado e exclusão legalizada. Nos principais rankings internacionais de qualidade democrática, os Estados Unidos deixaram de estar do lado dos bons. Desde o primeiro mandato de Donald Trump, observou-se um declínio consistente nos indicadores institucionais. Segundo a Economist Intelligence Unit, os EUA deixaram de ser classificados como uma “democracia plena” e passaram à categoria de “democracia com falhas”.
Voltemos ao turismo. Uma análise recente da Oxford Economics projeta uma queda de 5,1% nas viagens turísticas aos Estados Unidos, contrariando a tendência de crescimento anual observada nos últimos anos —em 2023, por exemplo, o aumento foi de 31%. Uma pesquisa divulgada esta semana revelou que 77% dos suíços não pretendem visitar os EUA devido a Donald Trump.
Em 2024, cerca de 1,9 milhão de brasileiros viajaram aos EUA, com um gasto total estimado em 6,3 bilhões de dólares. O Brasil ocupa atualmente a sexta posição entre os países que mais consomem em território norte-americano. Os EUA ocupam um imaginário de consumo e modernidade no Brasil. Ter o visto e viajar até à América é visto por parte da população como um símbolo de prestígio —uma forma de mostrar poder aquisitivo.
Para autores como Octavio Ianni, a modernidade periférica não é apenas um estágio atrasado em relação ao “centro”, mas um modo particular de viver a modernidade, marcado pela tensão entre o desejo de pertencimento e a condição estrutural de subordinação. Para muitas famílias, ir à Disney se tornou um rito de passagem da classe média emergente.
Durante os anos de câmbio favorável —especialmente entre 2005 e 2014— os Estados Unidos consolidaram-se também como destino de compras para os brasileiros. Esse cenário, no entanto, mudou. A desvalorização do real, somada às políticas protecionistas implementadas durante o governo Trump —incluindo novas tarifas de importação—, tende a encarecer os bens de consumo no mercado norte-americano, reduzindo a atratividade econômica do turismo nos EUA.
Os brasileiros têm opções. O Canadá, além da segurança institucional, tem se consolidado como destino para famílias e estudantes. A Europa oferece não apenas parques temáticos —como a Disneyland Paris—, mas também roteiros culturais, históricos e gastronômicos que se tornaram mais acessíveis nos últimos anos. Entre Brasil e Portugal, há hoje 102 voos semanais ligando 13 capitais brasileiras a diferentes cidades portuguesas —uma verdadeira ponte aérea sobre o Atlântico.
A decisão de não fazer turismo nos Estados Unidos poderá, em breve, tornar-se um símbolo de consciência cívica e posicionamento político. Um gesto de recusa ativa à humilhação e à seletividade racial travestida de protocolo de segurança. O “não ir” aos EUA de Trump poderá ganhar contornos de declaração pública e de distinção social. Nesse novo mapa de prestígio, posar com sacolas na Times Square deixará de ser afirmação de classe, mas de falta dela.
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Fonte.:Folha de S.Paulo