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- Author, Juan Francisco Alonso
- Role, BBC News Mundo
“É mais seguro ser temido do que amado.”
A frase é do filósofo e diplomata italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527). Ele expôs na sua obra O Príncipe as estratégias nuas e cruas aplicadas pelos governantes ao longo da história, especialmente os déspotas e autocratas, para se manterem no poder.
No final de 1941, ele ordenou a publicação do chamado decreto “Noite e Neblina” (Nacht und Nebel, em alemão). Este instrumento autorizou o encarceramento e julgamento, no mais absoluto segredo, de qualquer inimigo do regime nazista nos territórios então ocupados pela Alemanha.
Organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, juristas e especialistas das Nações Unidas consideram que esta ordem foi a semente do conceito atual de desaparecimento forçado de pessoas, uma das mais graves violações dos direitos humanos, qualificada como crime de lesa humanidade pelo Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI).

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Oculto pelas trevas
No dia 7 de dezembro de 1941, enquanto os japoneses (aliados dos nazistas) bombardeavam Pearl Harbor, no Havaí, o marechal Wilhelm Keitel (1882-1946), chefe do Estado Maior das Forças Armadas alemãs, assinou um documento intitulado Instruções para a persecução das infrações cometidas contra o Reich ou as forças de ocupação nos territórios ocupados.
O texto dava luz verde para que as forças nazistas capturassem pessoas “que ameaçassem a segurança alemã” nos países ocupados e as submetessem a um procedimento especial, segundo explicou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) o diretor do Centro de Estudos de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Central da Venezuela (UCV), Jesús Ollarves Irazábal.
“Os detidos não eram executados de imediato, mas sim transportados secretamente para a Alemanha, onde desapareciam sem deixar nenhum rastro”, acrescentou ele.
Ollarves é ex-juiz e autor do livro Desaparición Forzada de Personas: Estudio Histórico-Jurídico (“Desaparecimento forçado de pessoas: estudo histórico-jurídico”, em tradução livre).
“Segundo o Führer, as penas de privação da liberdade e mesmo de prisão perpétua […] são percebidas como sinais de debilidade”, explicava o decreto, segundo o livro Noche y Niebla y Otros Escritos sobre los Derechos Humanos (“Noite e Neblina e outros escritos sobre os direitos humanos”, em tradução livre), do jurista argentino Rodolfo Mattarollo (1939-2014).
“Consegue-se um efeito de terror eficaz e prolongado por meio da pena de morte ou de medidas idôneas para manter os familiares e a população na incerteza sobre o destino dos culpados. O traslado para a Alemanha permite atingir este objetivo”, prossegue o documento.

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Nas semanas que se seguiram, Keitel assinou outros documentos, delineando o caminho a ser seguido pelas forças nazistas para infundir o medo exigido por Hitler.
“Nos casos [contra membros da resistência] em que a pena de morte não fosse pronunciada nos oito dias seguintes à detenção, os prisioneiros eram trasladados secretamente para a Alemanha, onde desapareciam sem deixar rastros e não se podia fornecer nenhuma informação sobre o seu paradeiro ou seu destino”, afirma o jurista venezuelano.
Um elemento fundamental era o momento em que as vítimas eram capturadas e enviadas para solo alemão: “na noite e na neblina”, uma expressão que, segundo Mattarollo, Hitler havia extraído “de um trecho da [ópera] O Ouro do Reno, de Richard Wagner [1813-1883]”. Hitler era admirador fanático das obras do compositor alemão.

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Nada de mártires
O decreto “Noite e Neblina” veio a público após o início da Operação Barbarossa, a invasão da União Soviética (1922-1991) pelos nazistas, no verão do hemisfério norte de 1941.
A resistência dos países europeus ocupados pelos nazistas aproveitou a ocasião, particularmente na França, para lançar ataques contra as forças alemãs.
Por outro lado, Hitler queria acabar com qualquer resistência que houvesse à sua ocupação, mas evitando oferecer aos insurgentes símbolos que inspirassem outras pessoas a se rebelar.
“Keitel declarou, no tribunal de Nuremberg, que, se os familiares tivessem sabido do que se passava [com seus entes queridos], teriam criado mártires”, explicou à BBC a jurista italiana Gabriella Citroni, presidente do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados da ONU.
“O fato de não saberem o que aconteceu com os desaparecidos paralisava seus familiares e pessoas próximas”, destacou a especialista.
Os nazistas tomaram medidas para garantir que não ficassem rastros das vítimas do decreto.
“As sentenças dos julgamentos sumários e sem defesa não eram anotadas, nem nas estatísticas oficiais do Reich, nem nos prontuários penais comuns”, segundo Ollarves. “A prática habitual de informar a imprensa sobre as execuções e fixar avisos em locais públicos foi omitida.”
“Os familiares não eram notificados das execuções, nem das mortes dos seus entes queridos por outras causas. Os túmulos de prisioneiros não podiam manter inscrições com os nomes dos falecidos.”
Por outro lado, Mattarollo afirmou em seu livro que os prisioneiros trasladados para a Alemanha eram levados para prisões ou campos de concentração, onde eram totalmente isolados do mundo exterior.
“Eles não tinham autorização para manter nenhum contato”, escreveu ele. “Não tinham direito a escrever nem receber cartas, pacotes ou visitas.”

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Não a criaram, mas a legalizaram
A Anistia Internacional, no seu relatório intitulado Não à impunidade dos desaparecimentos forçados (2011), afirmou que Hitler “inventou” esta gravíssima violação aos direitos humanos, com seu decreto de 1941.
Mas os especialistas consultados pela BBC News Mundo apresentaram algumas ressalvas a esta afirmação.
“O desaparecimento forçado é uma prática anterior ao decreto ‘Noite e Neblina'”, segundo Ollarves. “No século 20, este crime teve seu auge na Rússia a partir de 1917, quando começou a ser aplicado o terror vermelho de Vladimir Lênin [1870-1924].”
“Zinaida Gippius [1869-1945], a poetisa de Petrogrado [hoje, São Petersburgo], escreveu que ‘literalmente, não existia uma única família de quem eles não tivessem arrebatado, retirado ou feito desaparecer alguém”, indica o jurista venezuelano.
A presidente do Grupo da ONU se expressou em termos similares.
“Ao longo da história, os desaparecimentos foram utilizados em guerras e conflitos”, segundo ela. “Mas a novidade com os nazistas é que eles foram os primeiros a colocá-los por escrito, sistematizá-los e incluí-los no seu ordenamento legal.”
“As normas do decreto ‘Noite e Neblina’ reúnem as características fundamentais do que hoje é considerado o delito de desaparecimento forçado de pessoas”, acrescentou Citroni.

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O artigo 7° do Estatuto de Roma define o desaparecimento forçado de pessoas como “a apreensão, detenção ou sequestro de pessoas por um Estado ou organização política, ou com sua autorização, apoio ou aquiescência, seguido pela negativa em admitir esta privação de liberdade ou fornecer informações sobre o destino ou o paradeiro dessas pessoas, com a intenção de mantê-las fora do amparo legal por um período prolongado”.
Em 1946, durante os julgamentos de Nuremberg, Keitel tentou, sem sucesso, atribuir a Hitler toda a responsabilidade intelectual pelo decreto. O alto oficial assegurou ter se oposto ao instrumento e expressou remorsos pela sua aplicação.
“Keitel defendeu que [os desaparecimentos forçados] foram o ato mais terrível cometido pelos nazistas”, explica Citroni.
“E isso surpreende porque se esperaria que ele falasse dos campos de concentração, mas ele se justificou dizendo que, com este decreto, foi instituído o terrorismo de Estado.”
“Esta confissão explica por que foram empregados os desaparecimentos forçados, em vez de simplesmente matar as pessoas”, prossegue a especialista, “pois, embora o desaparecimento forçado seja muito mais complicado do que outros crimes, ele permite atingir outros objetivos.”
“É um crime que gera um medo profundo na sociedade por longo tempo, pois afeta não só os familiares das vítimas, mas suas conexões próximas, que ficam presas no que os especialistas chamam de ‘luto congelado’, uma dúvida sobre o que aconteceu, o que também implica tratamento desumano.”

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Por que isso ocorreu na América Latina?
Não se sabe ao certo quantas pessoas foram vítimas do decreto nazista.
A Enciclopédia do Holocausto afirma que cerca de 7 mil pessoas foram presas e executadas, principalmente na França, com base naquela norma. Mas outras fontes apresentam números muito mais altos.
O grave é que esta prática não ficou enterrada entre os escombros do regime nazista, após sua derrota em 1945. Ela se espalhou pelo mundo, particularmente pela América Latina, onde deixou milhares de vítimas desde meados do século 20.
A Anistia Internacional calcula que as diferentes ditaduras militares do continente provocaram mais de 90 mil desaparecimentos entre 1966 e 1986.
É preciso somar a este número 121.768 a 210 mil vítimas registradas na Colômbia, durante seu conflito armado (1958-2016); e as mais de 120 mil contabilizadas pelo México, desde o início da guerra contra as drogas.
No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade, em 2014, confirmou 434 vítimas mortais do regime militar (1964-1983). Destas, 210 pessoas continuavam desaparecidas.

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“O desaparecimento forçado de pessoas se estendeu ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980, particularmente em países com governos ditatoriais, autoritários ou que sofriam conflitos armados internos”, explica Ollarves. “Um dos casos mais emblemáticos foi o da Operação Condor, projetada e executada no Cone Sul.”
Já Citroni atribui este fato à formação recebida pelos militares latino-americanos durante a Guerra Fria, para lutar contra a subversão e o terrorismo.
“Onde estudaram muitos dos militares da América Latina?”, questiona ela. “Todos no mesmo lugar [a Escola das Américas]. E o que se ensinou para eles ali?”
“Isso explica por que, do México para baixo, foi aplicada a mesma técnica.”

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Mas a presidente do Grupo de Trabalho da ONU ofereceu outros motivos para explicar por que foram (e continuam sendo) registrados tantos casos deste tipo de crime na região.
“É um delito que apresenta um índice de impunidade muito alto, devido às dificuldades para investigar este tipo de casos, pelos segredos que os rodeiam e pela quantidade de implicados. […] Não acredito conhecer um único caso de desaparecimento forçado em que tenha havido um só perpetrador.”
Citroni deixa claro que este não é um problema exclusivamente latino-americano.
“Quando falamos em desaparecimentos forçados, logo os associamos à Argentina ou ao Chile, o que é certo”, explica ela. “Mas é um estereótipo um tanto cômodo, pois, no Grupo de Trabalho, recebemos casos de todas as partes do mundo.”
“Da América Latina, sabemos mais pelos familiares, que têm sido ativos, questionadores e batalhadores. Os familiares tomaram as ruas para denunciar, mesmo que eles também desaparecessem.”
Para a jurista italiana, a eficácia deste crime é o motivo por que ele ainda segue sendo registrado, agora também em novas modalidades, como os desaparecimentos de curta duração registrados na Venezuela e no Egito.
“É um mecanismo de controle social muito eficaz, cujos efeitos podem passar de geração em geração e, por isso, não sai de moda”, conclui Gabriella Citroni.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL