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29 de dezembro de 2025

O Trump-Kennedy Center e o vandalismo progressista – 29/12/2025 – João Pereira Coutinho

O Trump-Kennedy Center e o vandalismo progressista – 29/12/2025 – João Pereira Coutinho

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O mundo é dos selvagens. O Kennedy Center, sala principal de espetáculos de Washington D.C., foi rebatizado como Trump- Kennedy Center. O conselho diretor decidiu por unanimidade —e Trump, que nomeou o conselho, deve ter festejado. Finalmente! Ele e Kennedy no mesmo patamar! Ou quase. O nome do Donald vem primeiro.

Eis uma forma moderna de “damnatio memoriae” —condenação da memória—, prática comum entre os imperadores romanos mais inseguros.

Para apagar da memória pública um antecessor incômodo, o tirano do momento ordenava que seu nome, sua imagem ou seus feitos fossem cancelados de estátuas, edifícios, até moedas. Depois de Caracalla assassinar o irmão Geta, nem o dinheiro escapou à sua fúria demencial. Era preciso que o irmão nunca tivesse existido.

Como resumiria o escritor George Orwell séculos depois: quem controla o passado controla o futuro —e quem controla o presente controla o passado.

O Donald não apaga, é verdade. Acrescenta —ou seja, conspurca o passado para se coroar no presente. Mas a atitude é a mesma: apropriar-se do espaço público como se fosse território privado. Onde já vimos isso?

Nos últimos anos, claro, quando virou moda derrubar estátuas “problemáticas”, rebatizar ruas ou edifícios com nomes “consensuais”, “descolonizar” currículos por meio da expulsão sumária de autores brancos e ocidentais —sem esquecer a reescrita de obras clássicas para não ferir as sensibilidades do leitor contemporâneo.

Quem se indigna com o Trump-Kennedy Center, mas aplaudiu o vandalismo alegadamente progressista que se espalhou pelo Ocidente, precisa ao menos fazer um exame de coerência.

Afinal, estamos falando de duas formas de reorganizar o panteão público de acordo com os caprichos do presente. A iconoclastia negativa de quem derruba monumentos e a iconoclastia positiva de quem se apropria deles são duas versões do mesmo abuso. E ambas partilham a mesma raiz: o presentismo.

Foi o historiador François Hartog quem consagrou o conceito. Vivemos um tempo em que o presente se tornou o único critério legítimo de sentido. Isso implica dois vícios de pensamento.

Por um lado, o passado deixa de ser visto como um território distante, com valores e atitudes distintos dos nossos. Passa a funcionar como um réu permanente, obrigado a se curvar aos critérios morais (e circunstanciais) dos juízes de hoje.

Se nossos antepassados foram racistas, conclui-se que devem ser recusados e apagados da memória pública —exatamente como Caracalla fez com o irmão.

E não há forma mais imediata de exorcizar esse passado do que raspar da herança material a prova irrefutável da sua existência.

Mas não é só o passado que não está a salvo. O presentismo condena também o futuro, negando-lhe autonomia e possibilidade. Quando Trump acrescenta seu nome ao de Kennedy na fachada da instituição, ele se antecipa ao julgamento da posteridade — porque, em rigor, não há posteridade. Existe apenas um presente narcísico, informe e ilimitado.

Os fanáticos que derrubam estátuas grunhem: “Este nome não merece estar aqui!”. Os fanáticos que executam os caprichos de Trump grunhem: “Este nome tem de estar aqui!”

Uns e outros, em seu primitivismo presentista, só concebem o espaço público como um campo de batalha cultural —não como depósito vivo dos que morreram, dos que vivem e dos que ainda não nasceram. Se essa batalha fosse apenas cultural, já seria suficientemente insuportável. O problema é que o presentismo cobra um preço político alto: a democracia moderna depende de uma ideia de futuro.

Como explica o filósofo Jonathan White, em “In the Long Run: The Future as a Political Idea” (ou no longo prazo: o futuro como ideia política), é a possibilidade de um tempo vindouro —desejavelmente melhor— que alimenta as virtudes democráticas. Quando nada se esgota no imediato, as derrotas são temporárias, a espera é tolerável e os consensos se tornam desejáveis.

As democracias contemporâneas, argumenta White, estão envenenadas pelo presentismo. Basta ler os jornais: tudo se reduz à gestão permanente de crises; tudo é ansiedade apocalíptica; tudo é moralização simbólica —estátuas, livros, até Havaianas!

Politicamente, os contemporâneos lembram ratos de laboratório correndo freneticamente na roda, rumo a lugar nenhum. O passado não existe. O futuro também não. Restam as neuroses do presente — uma espécie de presídio do corpo e da alma. Será preciso lembrar que o destino desses ratos raramente é inspirador?


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Fonte.:Folha de S.Paulo

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