Um grupo de orcas do oceano Pacífico, na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, parece ter inventado o equivalente daquelas escovas compridas que os seres humanos usam para coçar as costas. Pesquisadores documentaram o processo de fabricação dos utensílios a partir de talos de algas, bem como o uso coletivo deles por esses mamíferos marinhos.
A descoberta, descrita em estudo publicado nesta segunda-feira (23) na revista especializada Current Biology, está sendo considerada o primeiro caso de fabricação deliberada de instrumentos entre cetáceos, o grupo das baleias e golfinhos (as orcas, apesar de seu corpanzil e do apelido tradicional e incorreto de “baleias-assassinas”, na verdade são tecnicamente golfinhos muito grandes).
Embora o uso de ferramentas esteja se revelando cada vez mais comum em diversos grupos de animais, modificar com relativa precisão uma matéria-prima até obter o instrumento desejado é algo muito mais raro, sendo encontrado com frequência apenas entre grandes símios (chimpanzés, orangotangos etc.) e em certas espécies de corvos.
As conclusões vêm de um grupo de cientistas liderado por Michael Weiss, do Centro de Pesquisa Sobre Baleias, organização do estado americano de Washington que monitora as orcas da região estudada desde 1976.
A população dos cetáceos que inventou a “escovação” habita o chamado mar Salish. Trata-se de uma faixa de água salgada de 440 quilômetros de comprimento, que abrange uma série de estreitos e canais entre o estado de Washington, perto de Seattle, até a província canadense da Colúmbia Britânica, um pouco mais ao norte. As orcas ali são consideradas residentes, ou seja, não migram, permanecendo o ano todo no mar Salish, e sua população enfrenta um grande declínio histórico, alcançando hoje apenas uns 70 indivíduos.
Weiss e seus colegas flagraram o comportamento inusitado dos bichos pela primeira vez em abril de 2024, com a ajuda de drones. No total, foram 30 episódios de uso das “escovas” e oito momentos em que os bichos foram observados obtendo a matéria-prima para os instrumentos.
Para poder fabricar os utensílios, as baleias quase sempre mergulhavam para morder a parte mais fina de um tipo de “kelp” (alga de grande porte), da espécie Nereocystis luetkeana, perto da “raiz” do organismo. (As aspas são necessárias porque, apesar da semelhança superficial de estilo de vida, tais algas não são vegetais verdadeiros, mas pertencem a um grupo paralelo de seres vivos.)
Depois de quebrar o “caule” da alga, elas usavam os dentes para cortar um pedaço relativamente pequeno da estrutura. Ainda usando o rostro (ou seja, o focinho), uma das orcas segurava o pedaço do caule e o esfregava nos flancos de um companheiro de grupo. Depois, os cetáceos ficavam nadando de maneira a continuar esfregando o pedaço de alga um no outro, remexendo o corpo de maneira exagerada.
Embora as orcas e outros cetáceos muitas vezes brinquem com o “kelp”, às vezes mergulhando embaixo de pedaços flutuantes da alga e cobrindo o corpo com eles dessa maneira, o novo comportamento registrado é bem diferente do que já tinha sido visto antes, além de envolver orcas de todas as idades, o que não acontece com os comportamentos de brincadeira.
Os autores do novo estudo propõem que a escovação com o caule de alga poderia ser uma mistura de prática de higiene com interação social –uma espécie de “skincare” entre amigas, digamos. As orcas estariam se ajudando na hora de esfoliar a pele velha do corpo, algo que, em outros grupos da espécie, costuma ser feito quando o animal se esfrega no leito pedregoso de certas praias, por exemplo.
Se a ideia estiver correta, trata-se de mais um caso no qual a transmissão cultural de um comportamento é essencial para o uso de instrumentos entre animais. Para resolver o mesmo problema –a necessidade de retirar a pele morta– grupos diferentes de orcas chegaram a soluções culturais distintas, que passaram a ser transmitidas dentro de cada grupo de forma independente.
Para confirmar isso, no entanto, os pesquisadores ressaltam que é preciso observar melhor e por mais tempo o processo de uso das “escovas”.
Fonte.:Folha de S.Paulo