Enquanto passo um café cultivado nas montanhas capixabas, percebo que, às vezes, a gente se esquece de alguns Brasis. Até que algo nos lembra da diversidade do nosso país. Uma xícara, uma canção, um espetáculo teatral.
É sempre assim, por exemplo, ao ouvir Gilberto Gil, artista que melhor conseguiu abarcar os diferentes Brasis. Com uma obra que passa pelo afoxé de Salvador, o Rio de Janeiro —que continua lindo— e, claro, o Lamento Sertanejo. Cantou ainda o punk das periferias de São Paulo e reverberou todas as novidades, que vêm dar à praia em Florianópolis ou em qualquer outro lugar ao sol, outro lugar ao sul.
Foi assim também ao assistir ao musical “Aquele Abraço”, no Roxy Dinner Show, casa inaugurada em outubro de 2024 em Copacabana, no Rio. Com o propósito ambicioso de retratar os Brasis em um musical de uma hora e meia, o show começa no litoral da Bahia com todo seu caldeirão étnico-cultural. Do afoxé, o espetáculo vai ao sertão nordestino, onde —veja só— Gilberto Gil também se faz presente, com suas parcerias com Dominguinhos e as odes a Luiz Gonzaga que conseguem ir além do mestre ao capturar com tantas nuances a vida do sertanejo.
A partir daí, o show navega por outras regiões brasileiras. Assim, acaba por explicar o país não apenas para estrangeiros, mas para nativos que supunham conhecer o Brasil. Exemplo disso é o número dedicado ao monumental e inexplicavelmente não tão reconhecido festival de Parintins.
Ao fim, o show acaba com uma música —veja que surpresa— de Gilberto Gil, pois poucos fizeram um retrato tão nostálgico porém feliz do Rio de Janeiro, terra que o baiano adotou há tempo. Talvez tenha sido o clima de fim de festa da Quarta-Feira de Cinzas, ou o alívio de deixar a prisão política, mas foi nesse contexto que Gil compôs “Aquele Abraço”, uma canção despedida-reencontro que se tornou um hino da cidade.
“O reencontrar a cidade do Rio na manhã em que nós saímos da prisão e revimos a avenida Getúlio Vargas ainda com a decoração de Carnaval foi o pano de fundo da canção. Na minha cabeça, ‘Aquele Abraço’ se passa numa Quarta-Feira de Cinzas; é quando o ‘filme’ da música é em mim mentalmente locado”, disse em depoimento para o livro Todas as Letras, de Carlos Rennó.
Encerrado o espetáculo, tenho um novo encontro com mais um pedaço do país, por meio de um alimento que retrata como nenhum outro os vários Brasis. No cardápio, uma menção ao café do Cerrado Mineiro, o primeiro com denominação de origem.
E assim, na xícara, acabamos por lembrar que o Brasil do café é plural, os Brasis dos cafés. Não à toa, temos hoje mais de uma dúzia de indicações geográficas cafeeiras: as bebidas ácidas da Chapada Diamantina, café com notas de castanha do Sul de Minas, os exóticos robustas amazônicos cultivados em Rondônia, e tantos mais. A cada região, um novo sabor, um café único.
Seja na xícara, no palco do Roxy ou no disco de Gil, seguimos reencontrando os Brasis.
Agora me dê licença que meu café terminou de coar. É um grão cultivado nas montanhas capixabas, torrado em Maceió e preparado aqui mesmo em São Paulo, em um método de filtragem desenvolvido no Recife. Uma verdadeira geleia geral.
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Fonte.:Folha de São Paulo