Para os sudestinos, visitar Belém do Pará e desbravar a gastronomia do lugar equivale a mergulhar em águas desconhecidas – mesmo ingredientes comuns por aqui, como o açaí, são consumidos de formas distintas.
O glossário a seguir foi elaborado com a colaboração de cinco experts em cozinha paraense: Saulo Jennings, do restaurante Casa do Saulo, com cinco unidades, sendo uma em São Paulo; Thiago Castanho, sócio do bar paulistano Sororoca e apresentador do programa Sabores da Floresta (GNT); Felipe Castanho, fundador da Nauta Pães e Doces Artesanais, em Belém; Joanna Martins, pesquisadora da cultura alimentar amazônica e fundadora da Manioca Brasil; e Daniela Martins, chef do Lá em Casa Balcão, em Belém.
Embora didático, o conteúdo é apenas um primeiro passo para conhecer a diversidade paraense, como Jennings adverte: “O Pará é grande e diverso. Se você sai de Belém e vai para o Santarém, onde nasci, ou para a Ilha de Marajó, muda tudo”.
Açaí
Esqueça o creme gelado e adoçado com xarope de guaraná, comum no Sudeste. Entre a população ribeirinha e nas barracas do mercado Ver-o-Peso, a tradição é consumir a polpa dos frutos pura e processada, em forma de creme, com peixe, charque ou camarão salgado – uma combinação que, só recentemente, chegou aos restaurantes.
“Já a elite de Belém sempre preferiu comer o açaí na sobremesa, com farinha d’água ou de tapioca flocada, adoçado com um pouco de açúcar”, conta Joanna Martins.
Na Casa do Saulo, o açaí vira a geleia que compõe algumas entradas e é servido em cumbuca, como sobremesa, adoçado com açúcar ou mel.
O ingrediente ficou no centro de uma polêmica, em agosto, ao ser proibido pela organização da COP30, que usou como argumento o risco de transmissão da doença de Chagas. Produtos oriundos de empresas registradas, no entanto, passam por pasteurização, o que elimina o problema – tanto que a proibição foi revogada.
Aviú
Também conhecido como avium, esse camarão dos rios amazônicos é tão miúdo que chega a ser menor do que uma unha. “A rede é tão fina que mais parece um lençol”, conta Thiago Castanho.
Versátil, o ingrediente entra em muitos preparos. Uma das receitas favoritas do paraense é a torta, que não passa de uma grande omelete feita na frigideira. “Também usamos aviú para fazer mujica, espécie de sopa espessada com farinha de mandioca fina. Parece um pirão”, explica Felipe Castanho.
Bacuri
O chef Thiago Castanho sorri ao falar da fruta, sua preferida. “Dá só uma vez por ano. Como tem muita casca e pouca polpa, rende só 10% e custa muito caro. Na safra, pago R$ 40 pelo quilo da polpa, mas o preço chega a R$ 90 fora da época.”
Felipe Castanho a considera “um cupuaçu mais delicado”. Versátil, vira suco, creme e sobremesas. Típica do Pará, a torta maria izabel é um bolo branco recheado e coberto com creme de bacuri. “Este ano, vou usar o mesmo preparo no panetone”, diz o padeiro.
Segundo Thiago, a casca da fruta também é bastante consumida na forma de geleia.
Carimã
Trata-se da farinha de mandioca mais fina de todas, a ponto de parecer farinha de trigo. “No processo de produção, mantém-se todo o amido. Com isso, o carimã tem capacidade de reter mais água e vira um produto ótimo para pães e bolos”, explica Thiago Castanho.
Casadinho ou cheiro verde
No Pará, a dupla de ervas é composta por chicória-do-pará e coentro. A primeira, também conhecida como coentrão ou coentro selvagem, tem folhas longas e finas de sabor marcante. Já o coentro é o mesmo consumido no Sudeste – e odiado por alguns paulistanos.
Ao contrário do nosso cheiro verde, que costuma entrar na finalização dos pratos, o paraense acrescenta o casadinho no começo da cocção. “É a base dos nossos refogados, junto com cebola, alho, tomate e pimenta de cheiro”, ensina Daniela Martins.
Farinha d’água
Leva esse nome porque, depois de colhida, a mandioca passa dias de molho na água, fermentando, o que gera seu sabor azedinho característico. Ao ser torrada, vira uma farinha de grânulos médios ou grossos.
A cidade de Bragança, no noroeste do estado, conquistou a Indicação Geográfica com uma farinha d’água que passa por mais uma etapa – depois de fermentada, descascada e processada, a mandioca vira uma massa que passa por outra lavagem com água. “Isso equilibra a acidez e produz uma crocância mais suave. Os grãos são resistentes, mas quebram quando mordidos”, explica Joanna.
Paraenses costumam dizer que a farinha d’água não é acompanhamento, mas prato principal. Vira farofa, coroa o açaí com peixe e também pode ser jogada direto na boca, pura e sem tempero.
Farinha de tapioca flocada
As tapiocas, panquecas que o Nordeste inventou e disseminou pelo Brasil, são feitas de farinha de tapioca granulada, produzida a partir da goma de mandioca. A matéria-prima da versão flocada é a mesma, mas o processo de fabricação é diferente.
Enquanto a granulada seca ao sol antes de ser peneirada, a flocada é tostada em tachos até estourar feito pipoca. O produto, de textura crocante, acompanha as tigelas de açaí e vira ingrediente de mingaus.
Feijão manteiguinha
Uma das variedades do feijão-caupi, é cultivado na região oeste do Pará, onde o rio Tapajós se encontra com o rio Amazonas – por isso, é conhecido como feijão manteiguinha de Santarém.
Os grãos são miudinhos, claros, e não rendem caldo grosso. O hábito paraense é servi-los como salada, com vinagrete rico em coentro, ou em preparos como baião de dois e tropeiro. “Desde que virou moda, o feijão manteiguinha aparece muito como pipoca e homus”, diz Daniela Martins.
Filhote
A gigante piraíba, peixe da Bacia Amazônica que pode alcançar 150 kg, tem carne fibrosa quando adulta. Por isso, o paraense prefere pescá-la quando ainda é filhote, pesando no máximo 40 kg.
Neste estágio, a carne é macia e delicada, com alto teor de gordura, e admite diversos preparos: entra em caldeiradas, pode ser assado na brasa, frito ou chapeado.
Jambu
Toda a planta, da raiz às flores, contém uma substância chamada espilantol, que age sobre os receptores nervosos da boca e causa sensação de tremor. Não por acaso, é uma sensação na gastronomia, na coquetelaria e até em acessórios sexuais.
A cachaça com jambu é onipresente nos bares paraenses, mas o ingrediente vai em tudo. “Esse, até na veia. Faço pesto, ponho nas caldeiradas, sirvo como shot de boas-vindas e preparo um crispy para finalizar risotos”, conta Jennings.
O paraense não tem hábito de consumir as folhas cruas, mas Daniela Martins garantes que ficam ótimas em saladas, mescladas a outras variedades de sabor mais suave.
Maniva
Moídas, as folhas da mandioca viram o ingrediente principal da maniçoba, um dos pratos emblemáticos do Pará. Além de extremamente amarga, é rica em ácido cianídrico, tóxico para o organismo humano. Por isso, deve ser longamente fervida.
No Ver-o-Peso, onde há um setor só para ela, é possível comprar maniva já cozida. “A Embrapa recomenda o mínimo de 72 horas de fervura. Mas, para a maniçoba ficar gostosa, tem que ferver por sete dias”, ensina Joanna.
O prato, que leva carnes salgadas e defumadas, é servido em dias festivos e entrou na rotina do belenense pelas mãos das tacacazeiras, que vendem maniçoba n a hora do almoço.
O aspecto, diz Jennings, não é dos mais bonitos, o que o estimulou a criar um disfarce. “Faço a receita da minha avó, mas criei uma apresentação brincalhona, o escondidinho. Sirvo na cuia, sob uma camada de farinha d’água de Bragança retorrada. Você precisa quebrar essa camada para descobrir o que está lá dentro.”
Piracuí
O acari, também conhecido como cascudo, é um peixe feioso que vive no fundo dos rios amazônicos. Na época da seca, no fim do ano, ele se esconde em buracos, as locas, e pode ser pescado até com as mãos. Sempre foi tão abundante que os indígenas desenvolveram uma técnica de conservação que virou tradição paraense.
A carne, depois de cozida, vai para grandes tachos sobre o fogo, onde é salgada e torrada até virar uma farinha, matéria-prima de diversos preparos, como omeletes, sopas e tortas. As receitas mais tradicionais, no entanto, são a farofa e o bolinho de piracuí.
Pirarucu
Segundo Jennings, o peixe ocorria na região do Baixo Amazonas e, no passado, não chegava fresco ao Pará. “Era mais fácil salgar as mantas do que transportar no gelo. Por isso, os moradores de Belém sempre tiveram o hábito de consumir pirarucu salgado.”
Considerado o bacalhau da Amazônia, o pescado rende bolinhos, casquinhas, farofas e caldeiradas com leite de coco. Mas sua versão fresca já pode ser encontrada na capital em função dos projetos de manejo sustentável do pirarucu.
“Fui o primeiro a servir o peixe fresco em Belém, as pessoas estranhavam. A carne é resistente e tem que ser bem trabalhada, para não ficar dura e sem sabor. É preciso conhecer cada corte e saber como usá-los”, diz Jennings, que prepara o peixe defumado, curado e até em forma de bacon.
Queijo do Marajó
O queijo manteiga e o requeijão produzidos artesanalmente na Ilha do Marajó, à base exclusivamente de leite cru de búfalas, recebeu o registro de Indicação Geográfica (IG) em 2021.
Ambos têm como principal característica o sabor suave. “A gente come no pão ou com doce de cupuaçu. Um dos pratos típicos é o filé marajoara, que leva uma fatia grossa de queijo por cima”, conta Joanna Martins.
De acordo com Thiago Castanho, o ingrediente está em alta em Belém e virou iguaria. “Está custando bem caro, o que é certo. Finalmente as pessoas aprenderam a valorizar o produto.”
Tucupi
O caldo extraído da mandioca brava, depois de fermentado, é temperado com chicória, alho e alfavaca e longamente fervido, porque também contém ácido cianídrico. Gera um líquido amarelo vibrante, de sabor ácido, base de pratos emblemáticos, como o tacacá.
“É um ingrediente que já extrapolou as receitas caldosas e ganhou vida própria. Em Belém, tem até brigadeiro e sorvete de tucupi“, diz Daniela Martins. “Uso em risotos, caldeiradas e até em coquetéis”, emenda Jennings.
Na versão reduzida, chega-se ao tucupi preto, de textura viscosa e sabor concentrado e complexo, que precisa ser diluído para virar molho.
Fonte.:Folha de São Paulo


