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Conhecida como a cidade-luz, Paris carrega o título de capital do amor e do charme europeu. Mas por trás da imagem romântica da Torre Eiffel iluminada, há um problema que vem incomodando moradores, turistas e autoridades há alguns anos: o xixi na rua.
Urinar em locais públicos é uma infração comum em grandes centros urbanos, mas em Paris, o comportamento ganhou até um nome próprio: pipi sauvage, que em tradução livre significa “xixi selvagem”.
Na cidade francesa, não é incomum andar pelas estações de metrô da cidade e sentir um forte odor de urina nos corredores ou nas plataformas, ou caminhar pelas ruas durante a noite e flagrar alguém se aliviando em um canto.
Mais de 200 anos de pipi sauvage
A cidade luta contra esse inconveniente hábito de seus moradores há muitos anos.
Ainda no século 19, a polícia local instalou uma série de barras de ferro ou estruturas em formato de cone em esquinas e cantos das ruas de Paris em uma tentativa de criar obstáculos para quem se aliviava em edifícios, calçadas ou ruas.
Algumas dessas estruturas ainda podem ser vistas na cidade atualmente. Elas ficaram conhecidas como empêche-pipi (algo como ‘barra-xixi’, em português).
Por volta de 1840, Claude-Philibert Barthelot, conde de Rambuteau e prefeito de Paris, criou os primeiros urinóis modernos, durante uma campanha para tornar a cidade mais limpa.

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Os mictórios da época eram integrados a estruturas cilíndricas simples, usadas principalmente para avisos e anúncios. Por seu formato, foram apelidados pelos parisienses de Colonnes Rambuteau (colunas Rambuteau).
Com o tempo, porém, a cidade tentou desvincular a imagem do ex-prefeito dos urinóis públicos e um novo nome foi criado: vespasienne. A palavra faz referência ao imperador romano Vespasiano, a quem é atribuída a cobrança de um imposto sobre a urina na Roma Antiga.
Os mictórios, porém, rapidamente se tornaram locais de atividade sexual, principalmente entre os homens, devido à privacidade que ofereciam.
Na década de 1960, a Assembleia Nacional francesa votou um projeto para retirar todos os vespasienne das ruas para impedir encontros sexuais.
E foi apenas em 1981 que a cidade de Paris instalou seu primeiro banheiro público unissex. Hoje, as cabines públicas estão por todo lado.
Paris, aliás, lidera um ranking elaborado pelo jornal Le Monde de cidades europeias com mais banheiros públicos por quilômetro quadrado: são mais de 6 por km², bem à frente da segunda colocada da lista, Lyon, que tem 3 sanitários por km².

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Ainda assim, o problema persiste, segundo os próprios moradores e funcionários públicos que precisam lidar com a questão diariamente.
“O pessoal não tem muita vergonha, não. Não tem nem aquela coisa de se esconder no arbusto ou atrás da árvore”, diz a brasileira Isabel Vigneron, que mora em Paris há um ano e meio e afirma ver com frequência homens urinando em público.
“E isso acontece mesmo com vários banheiros públicos na rua. Já vi inclusive pessoas fazendo xixi nas paredes da cabine. Não dentro, mas do lado de fora.”
Ecologia, arte e civilidade
Nas últimas décadas, a prefeitura usou diversas novas estratégias contra o pipi sauvage, como o uso de tintas repelentes à urina nas calçadas e muros, a instalação de urinóis ecológicos e até intervenções artísticas.
Uma dessas iniciativas envolveu a colocação de murais em pontos escondidos de estações de trem — locais onde a prática era comum — a partir de 2021. A ideia era reduzir a sensação de privacidade que encorajava os infratores.
“Instalamos um sensor para descobrir se o incentivo estava funcionando. E, em média, reduzimos os jatos em 80%”, afirmou à BBC Isabelle Collin, especialista em Ciências Comportamentais e consultora da empresa estatal ferroviária SNCF que participou do projeto, em uma entrevista à BBC gravada em 2023.

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Em outra tentativa criativa, Paris testou mictórios ecológicos que prometiam transformar urina em adubo para flores.
As estruturas vermelhas eram abastecidas com palha e foram desenhadas para não ter odor.
A medida ganhou atenção internacional em 2017, quando foi lançada, e rapidamente gerou polêmica. Alguns locais alegaram que o mictório a céu aberto, instalado próximo a monumentos e em frente ao Rio Sena, por onde passam diversos cruzeiros e outras embarcações, prejudicava a imagem da histórica local e era ofensivo.
Alguns urinóis chegaram a ser vandalizados por ativistas feministas radicais, que acusaram o mecanismo de ser sexista e excluir as mulheres.

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A prefeitura também chegou a apostar na criação de uma brigada especial para lutar contra as incivilidades, ativa desde 2016. Além de vigiar quem urina nas ruas, os agentes também sancionam outros comportamentos questionáveis, como jogar lixo no chão ou não recolher as fezes de cães.
Urinar em público é uma infração prevista pelo Código Penal francês e, em Paris, pode render uma multa de até 150 euros.
‘O universo’
Mas, para muitos moradores, todas as estratégias têm feito pouco para coagir quem urina nas ruas de Paris.
Isabel Vigneron diz ter se surpreendido muito com esse hábitos dos parisienses.
A paulistana afirma que só ter visto algo comparável no Brasil em época de Carnaval.
“Aqui é realmente muito pior do que no Brasil”, afirma. “Sempre que passeio com meu cachorro me deparo com alguém urinando ou tenho que desviar das poças.”
O francês Edwart Vignot é natural de Paris e de tanto ver manchas de urinas nas paredes e calçadas, começou a registrar as formas que via nas manchas com fotos.
“É possível ver poesia nesse tipo de coisa, porque elas criam uma forma, uma imagem. À primeira vista, você pensa que é abstrato, mas se você olhar, verá coisas diferentes, como animais, uma figura… o universo”, relatou à BBC Brasil.
O diretor de cinema compartilha suas fotografias em suas próprias redes sociais, como uma forma de arte amadora.
“É por isso que gosto de ser um caminhante em Paris e simplesmente observar.”

Crédito, Edwart Vignot
‘Forma de marcar território’
Mas por que os parisienses mantêm a “tradição” do pipi sauvage por tantos anos?
O psicólogo comportamental Nicolas Fieulaine foi um dos consultores que ajudaram a prefeitura de Paris a elaborar a estratégia de instalação de murais artísticos nas estações ferroviárias da cidade. Em uma entrevista concedida à BBC News em 2023, ele tentou explicar o fenômeno.
“No imaginário francês, e não tenho certeza se isso acontece em outros lugares, a urina pública é uma opção que parece estar disponível, e isso não coloca o caráter moral de uma pessoa em cheque”, diz.
Fieulaine também critica as soluções que se baseiam apenas na instalação de urinóis voltados ao público masculino. “As pessoas vão urinar lá, depois em outro lugar, depois em outro… e isso transmite uma sensação de liberdade, de poder sobre os espaços públicos, que exclui as mulheres”, afirma.
“Trata-se de uma forma poderosa de apropriação. Urinar em um lugar é uma forma de marcar território.”
Para o especialista, a higiene se tornou um tabu na França no século 19, quando um movimento em prol da saúde pública cresceu no país. O higienismo, como era chamado, defendia padrões sociais e de comportamento em nome da saúde.
Ele ajudou a revolucionar algumas cidades europeias, entre elas Paris, ao propor a construção de redes de esgoto, abastecimento de água potável, parques e espaços públicos, além de incentivar a adoção de práticas de higiene pessoal, como banho regular e proibição de descarte de lixo nas ruas.
Mas, segundo Fiolent, essa filosofia também criou um sentimento de vergonha em relação a qualquer coisa considerada suja ou ligada a fluidos corporais.
“Foi assim que isso se tornou um pequeno tabu”, afirma Fieulaine. “Não enfrentamos essas coisas de frente. Quando expostos a outros tipos de banheiros, como banheiros em que você precisa fazer as necessidades agachado, os franceses se sentem enojados porque isso os obriga a olhar para trás e enfrentar as questões que eles mesmos criaram.”
A BBC News Brasil procurou a prefeitura de Paris para entender quais são os impactos atuais da urina nas ruas na organização e orçamento da cidade, e quais medidas estão sendo tomadas em 2025 para minimizar o problema, mas não teve resposta até a publicação da reportagem.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL