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7 de julho de 2025

Pobre não pode reclamar do muito que lhe tiram – 07/07/2025 – Veny Santos

Pobre não pode reclamar do muito que lhe tiram – 07/07/2025 – Veny Santos

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Quando levanto e saio para o mundo, mantenho o costume de olhar atenciosamente para o meu bairro. Por dentro e por fora. Sinto como se o espaço e o tempo nunca tivessem se entendido aqui. Oscilam entre as casas que levaram décadas para instalar portões a trancafiar espiadas curiosas —também de dentro e de fora— e as pessoas cujo apertado cômodo nunca ganhou outro aposento para ventilar o cansaço dos dias de quem trabalha e, de fato, constrói a materialidade da vida e das histórias não contadas. Um pessoal que não pode reclamar do pouco que tem, senão já é visto como perigoso. Ingrato e perigoso esse pessoal.

Ao caminhar por onde cresci, reparo no silêncio que impera atualmente. Antes, nos contrastantes anos 1990, praticamente toda residência disputava os matinais ouvidos alheios com íntimas trilhas sonoras. A sinfonia dos insistentes que, mesmo exaustos, precisavam de mais um gole de etílico ânimo, fosse para cuidar do lar, fosse para anestesiar a mente surrada que só conseguia se equilibrar com o corpo quando ambos seguravam um ao outro para não cair na completa desgraça em que tudo e todos pareciam sempre laborar contra eles. Os insistentes orquestravam como sobreviver ao dia de cada vez —terapêutico para uns, neurotizante para outros.

Onde está o barulho senão para dentro dos portões do peito? O silêncio dos insistentes nunca foi, nem será, ode à domesticação. Assim como a ópera das insaciáveis sanguessugas falhou e falhará na execução do clímax que deveria elitizar a experiência entre parasitas e hospedeiros: o momento no qual o crepúsculo da paz entre quem explora e quem é explorado, afinal, anoitece os ânimos. Festejam os fartos ricos, servem os mirrados pobres. Não por acaso, Hegel segue difícil, quase indecifrável, tão relido quanto lido. Se fosse simples a tal questão falsamente tratada como “do momento” —a de quem serve e quem é servido, rendida à maldição da eterna introdução, contentar-se-ia o povo com manchetes rasas e afins. O povo não está contente, sabe-se. Uma hora o sangue seca.

“Nós contra eles”. E o que tem o pobre contra o rico? O que tem o pobre, objetivamente? Vão falar —ou escrever— sobre essa gente toda ou pior: por essa gente toda. Vão classificar, categorizar, vivissectar, resumir e concluir que qualquer desagrado que expressem revelará sua genética traidora, ingrata, codificada e gravada à base de nigrosina nesta massa tingida. O que tem o pobre contra o rico senão a insistência?

Todo dia saem de casa um pobre e um intelectual da pobreza —que pobre não é. Um tem milhares de questões, contradições, perspectivas, ideias para trocar e outras para trancafiar na sagaz habilidade de não dar pano para conversa mole ou ficar se explanando em redes sociais. O outro, apenas a singular obsessão por experimentar o que experimentaram antropólogos em tempos nos quais o olhar etnográfico não se distinguia tanto do savânico.

Avista-se um pessoal que não pode reclamar do muito que lhe tiram, senão já é visto como perigoso. Ingrato e perigoso esse pessoal.

Quando levanto e saio para o mundo, entre o “nós contra eles” e o “eles contra nós”, mantenho o costume de repetir: na real, sempre foi e sempre será nós por nós.


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Fonte.:Folha de S.Paulo

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