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27 de agosto de 2025

Polícia para quem precisa de polícia – 27/08/2025 – Maurício Stycer

Polícia para quem precisa de polícia – 27/08/2025 – Maurício Stycer

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Se uma cidade se define pela história de seus crimes, como diz o escritor Alberto Mussa, o Rio de Janeiro se explica pela morte de Cara de Cavalo, em outubro de 1964. A reconstituição do crime e os seus muitos desdobramentos são um dos pontos altos da excelente série documental “Homens sem Lei“.

Assaltante furreca, que roubava apontadores do jogo do bicho, Cara de Cavalo teve sua morte encomendada ao policial Milton Le Cocq por chefes da contravenção, que alimentavam a polícia com propinas. O caso resultou, porém, numa sucessão de equívocos e tragédias. Numa perseguição, Le Cocq encurralou Cara de Cavalo, mas morreu numa troca de tiros com o bandido. Segundo o repórter Luarlindo Ernesto, hoje com 82 anos, o tiro que matou Le Cocq foi dado acidentalmente por um outro policial. “Fogo amigo”, diz. Segundo a historiadora Mariana Dias, o autor do tiro foi o policial Hélio Vigio, que estava no mesmo Fusca da polícia em que estava Le Cocq.

A imprensa comprou a versão de que Cara de Cavalo matou Le Cocq. E ajudou a transformar num circo a caçada policial promovida para achar o criminoso. Numa das operações de busca, dois policiais de delegacias diferentes, o famoso Perpétuo de Freitas e um jovem iniciante, Jorge Galante, se desentenderam. Na confusão, Galante matou Perpétuo com um tiro.

Após 73 dias, a caçada a Cara de Cavalo terminou com o seu assassinato num casebre em Búzios. Todos os policiais que participaram da operação teriam sido obrigados a pegar o revólver calibre 45 de Le Cocq e disparar na barriga do criminoso. “Inclusive nós”, diz Luarlindo sobre os jornalistas que testemunharam a cena. Foram 64 tiros. A morte de Le Cocq e a vingança de seus colegas levou, em 1965, à criação da Scuderie Le Cocq, uma sociedade de policiais que iria resultar no Esquadrão da Morte, um grupo que fazia justiça com as próprias mãos, à margem da lei.

Com direção de José Tapajós e roteiro de Bruno Paes Manso, Flavia Kamenetz, Gabriel Priolli e o próprio Tapajós, “Homens sem Lei” é um biscoito fino em meio à onda de séries documentais sobre crimes verdadeiros. Entre as suas muitas qualidades, destaco a coragem de discutir o papel da mídia na cobertura policial. Além do decano Luarlindo, são vários os depoimentos de profissionais que apontam a promiscuidade na relação entre polícia e imprensa.

Zuenir Ventura, Cecília Oliveira, Aguinaldo Silva, Domingos Meirelles, Ubirajara Moura, Aroldo Machado e Marcelo Beraba estão entre os que ajudam Tapajós a mostrar como a mídia contribuiu —e ainda contribui— para a glorificação de policiais, a exaltação da violência e a disseminação do pânico. Também dá voz, de forma inédita, creio, a parentes do assaltante Lucio Flavio e do policial Mariel Mariscot.

Outro destaque é o depoimento despudoradamente franco de José Guilherme Godinho, o delegado Sivuca, um dos “homens de ouro” da polícia do Rio nos anos 1960. Ele foi eleito deputado estadual com um bordão célebre e ultrajante: “Bandido bom é bandido morto. E enterrado de pé, para não ocupar muito espaço”.

A série busca o tempo todo contextualizar os fatos e suas conexões políticas e culturais. Um tema destacado, por exemplo, é um trabalho do artista Hélio Oiticica, a bandeira-poema “seja marginal seja herói”, inspirada na morte de Cara de Cavalo. A pesquisa iconográfica inclui também um depoimento de Clarice Lispector sobre a morte de Mineirinho, outro criminoso famoso.

Em cinco episódios, “Homens sem Lei” é exibida às quintas, às 22h55, no A&E, com blocos de intervalo comercial a cada dez minutos. Em tempos de streaming, há que ter paciência para assistir dessa forma.


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Fonte.:Folha de S.Paulo

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