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- Author, James Lewis*
- Role, Serviço Mundial da BBC
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A estratégia de segurança nacional do governo do presidente americano, Donald Trump, tem alarmado os aliados mais próximos dos Estados Unidos e representa um afastamento dramático dos princípios fundamentais de décadas da política externa americana.
O documento de 33 páginas, divulgado pelo governo há alguns dias, apresenta o mundo principalmente como um cenário econômico, destacando acordos bilaterais e nacionalismo econômico em detrimento do multilateralismo e da promoção da democracia.
A estratégia reflete as “vertentes mais ideológicas” do governo Trump, avaliou Tom Bateman, correspondente da BBC News no Departamento de Estado dos EUA, no podcast The Global Story, do Serviço Mundial da BBC.
Essa estratégia também tem implicações para a América Latina, tanto na forma como os EUA se relacionam com os governos de direita, cada vez mais numerosos, até a nova versão da Doutrina Monroe (em referência ao presidente americano James Monroe, no século 19, que afirmava a primazia dos EUA no continente americano e rejeitava a interferência europeia). Essa doutrina repaginada reafirmaria a região como o “quintal” dos EUA.
Igualmente impactante é o que o documento omite, sem praticamente crítica alguma a adversários tradicionais como a Rússia e a China.
Em vez disso, reserva a linguagem mais carregada para a Europa, o que gerou preocupação nas capitais europeias.
‘Eliminação civilizacional’
Enquanto as estratégias de segurança nacional anteriores tendiam a reafirmar os valores e as prioridades compartilhados dos EUA com os países europeus, este documento segue por um caminho diferente.
A Europa será “irreconhecível em 20 anos ou menos”, afirma o texto, em razão da adesão do continente às instituições multilaterais e de suas políticas migratórias, que teriam se tornado uma influência corruptora da “identidade ocidental”.
Em sua seção dedicada ao tema, a estratégia declara de forma categórica que os Estados europeus enfrentam o que chama de “eliminação civilizacional”.
Líderes europeus ficaram, ao menos em conversas privadas, “horrorizados” com o documento, disse Bateman, do Serviço Mundial da BBC. “Eles não se surpreendem com o fato de essa ser a posição ideológica de algumas partes do governo, mas vê-la articulada em um documento político formal é bastante preocupante para eles.”

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‘Divórcio’
A reação ao documento na Europa, de ambos os lados do espectro político, não demorou.
O jornal francês de esquerda Le Monde descreveu o rompimento como um “divórcio”, afirmando que ele marca uma ruptura histórica com o período pós-Segunda Guerra Mundial (1939-45).
“O divórcio está concluído, restando apenas a divisão de bens”, escreveu o jornal em seu artigo.
Ainda mais revelador, em termos da imprensa francesa, disse Bateman, do Serviço Mundial da BBC, é o comentário do jornal francês conservador Le Figaro sobre a aparente contradição do documento ao sustentar, de um lado, o que chama de “pretensão do não intervencionismo” e, de outro, defender explicitamente o intervencionismo no caso dos países europeus.
A estratégia afirma textualmente a intenção dos EUA de estimular a resiliência de partidos de oposição nos países europeus. Isso implica apoio a partidos de extrema-direita, como a Alternative für Deutschland (AfD, na sigla em alemão) na Alemanha, o Partido Reformista no Reino Unido e o Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, na França, entre outros.
Trata-se de um apoio explícito a movimentos políticos na Europa que defendem o nacionalismo econômico e uma oposição rígida à migração. Eles são descritos pelo documento como “partidos patrióticos”.
A estratégia em relação à Europa seria uma repetição da forma como o governo Trump atuou na América Latina, avaliou Bateman, do Serviço Mundial da BBC.
Na Argentina, por exemplo, ele menciona o socorro econômico aprovado por Trump ao governo de Javier Milei poucos dias antes de o partido do presidente argentino enfrentar eleições legislativas que definiriam o futuro de seu projeto político.
“Isso foi interpretado pelos opositores (de Milei) como uma evidente interferência dos EUA”, afirmou Tom Bateman.

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Esse apoio se repetiu antes das recentes eleições em Honduras, quando Trump concedeu indulto ao ex-presidente Juan Orlando Hernández, que cumpria pena de 45 anos nos EUA por narcotráfico, ao mesmo tempo em que manifestou apoio ao candidato de direita Nasry “Tito” Asfura.
O mesmo ocorreu no Brasil, com os ataques de Trump aos tribunais do país que condenaram o ex-presidente “trumpista” Jair Bolsonaro (PL) por sua tentativa de golpe após a derrota nas eleições de 2022.
O ‘corolário Trump’ à Doutrina Monroe
A nova estratégia destaca o continente americano, referido como o “Hemisfério Ocidental”, como um dos principais focos da política externa dos Estados Unidos.
O governo quer “assegurar… que a região permaneça estável e suficientemente bem governada para evitar e desencorajar a migração em massa para os EUA”, segundo o documento.
A estratégia introduz a ideia de um “corolário Trump” à Doutrina Monroe, ao posicionar a tática do governo como uma continuação da política do presidente James Monroe (1817-1825), no século 19, que afirmava a primazia dos EUA no continente americano e repelia a interferência de potências coloniais europeias.
O governo considera essa atenção renovada necessária para contrabalançar a influência da China na América Latina, observa nosso correspondente, apesar de o país não ser mencionado diretamente no documento.
Segundo Trump, a China ganhou muita influência econômica na região, embora sua insinuação de que Pequim estaria “operando” o Canal do Panamá não seja literalmente verdadeira.

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Os recentes esforços diplomáticos, incluindo a visita do Secretário de Estado, Marco Rubio, a países latino-americanos no início do ano, sinalizam a intenção dos EUA de reafirmar seu domínio tanto econômico quanto estratégico na região.
Embora a estratégia não se aprofunde na dimensão militar dessa política, a campanha de bombardeios aéreos contra supostos narcotraficantes no Caribe e a presença de múltiplos navios de guerra e de militares dos EUA diante da costa da Venezuela reforçam a ameaça do uso da força militar.
Um desgaste anunciado
A deterioração das relações entre os EUA e a Europa vem sendo evidente há meses.
Um dos primeiros sinais da postura do governo Trump em relação à Europa ocorreu em janeiro, quando o vice-presidente dos EUA, JD Vance, fez um ataque mordaz às democracias europeias durante a Conferência de Segurança de Munique (Alemanha), repreendendo seus líderes por ignorarem as preocupações dos eleitores com migração e liberdade de expressão.
Na prática, porém, essa relação desconfortável tem se desenvolvido em outro cenário: a guerra na Ucrânia.
O documento sugere que a Europa não compreendeu as dinâmicas de poder em jogo e que os EUA precisam investir energia diplomática para estabilizar a região.
A União Europeia é acusada, segundo o texto, de dificultar os esforços dos EUA para encerrar a guerra na Ucrânia, e os EUA deveriam “restabelecer uma estabilidade estratégica em relação à Rússia”, o que, por sua vez, “estabilizaria as economias europeias”.
A mensagem central é que a Ucrânia deveria continuar sendo um Estado viável, mas isso exigiria o reconhecimento da posição dominante da Rússia.
Trump está “perdendo a paciência” com a Europa e com a Ucrânia, disse Bateman, do Serviço Mundial da BBC.
“Está claro que a pressão recai sobre os europeus para que aceitem uma posição que os ucranianos interpretam basicamente como uma capitulação”, comentou Bateman.

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A tensão em torno da Ucrânia já se manifestou em momentos de grande repercussão, incluindo a reunião no Salão Oval entre Trump e Vance com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em fevereiro, na qual o líder ucraniano foi rotulado de “desrespeitoso” e “ingrato”.
Os líderes europeus agora enfrentam a realidade de que os EUA podem pressionar por um desfecho muito mais favorável ao governo russo do que ao ucraniano.
A Rússia recebeu positivamente a Estratégia de Segurança Nacional, descrevendo-a como “amplamente consistente” com sua visão.
A nova Estratégia de Segurança Nacional já reconfigurou os debates em Washington D.C. (capital dos EUA) e em diversas capitais europeias.
As implicações para a Ucrânia, para as relações entre EUA e Europa e para a ordem global mais ampla ainda estão em evolução.
Mas o documento deixa uma coisa clara inequivocamente: o governo Trump pretende redefinir as prioridades da política externa dos EUA e espera que seus aliados se adaptem a essa nova realidade.
*Com informações adicionais do podcast The Global Story, do Serviço Mundial da BBC
Fonte.:BBC NEWS BRASIL


