A decisão do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal (STF) de impedir advogados de utilizarem seus celulares para gravar a acareação entre o tenente-coronel Mauro Cid e o general Braga Netto, realizada no início da semana, gerou reações críticas de juristas e reacendeu o debate sobre as violações às prerrogativas da advocacia. Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que não há respaldo legal para a medida, e que a restrição configura cerceamento de defesa. Os juristas estranham também o silêncio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em relação ao caso.
A acareação, prevista no artigo 229 do Código de Processo Penal, é utilizada para esclarecer contradições entre versões de acusados, testemunhas ou vítimas. No caso em questão, ela foi solicitada pela defesa de Braga Netto para confrontar trechos das declarações de Cid, delator da chamada “tentativa de golpe de Estado”.
Para a surpresa dos advogados de defesa, eles foram proibidos de utilizar seus celulares durante o ato, o que, segundo especialistas, não tem previsão legal e contraria o Estatuto da Advocacia. Na ata divulgada pelo STF, Moraes justificou a proibição alegando que a acareação seria um “ato de instrução” e não um “ato da defesa”, e que queria evitar “pressões indevidas, inclusive por meio de vazamentos pretéritos”, que poderiam comprometer “a instrução processual penal”.
Medida não tem amparo legal
O advogado Hendrix Lamarques, especialista em Estado Democrático de Direito, explica que a medida não encontra respaldo na legislação vigente. Os parágrafos 5° e 6° ao artigo 367 do Código de Processo Civil garantem a gravação da audiência, independentemente de autorização judicial, regra aplicável ao rito penal, por força do artigo 3º do Código de Processo Penal. O fato de a acareação se tratar, segundo a fundamentação de Moraes, de um “ato de juízo” não se sobrepõe à lei.
“Ademais, não se pode perder de vista que a acareação foi feita entre dois réus, de modo que também deve ser interpretada como ato de defesa, o que, por si só, já autorizaria a gravação pelos advogados”, esclarece.
Lamarques reforça que o uso de celulares e outros dispositivos tecnológicos é parte da rotina profissional da advocacia moderna e, por isso, constitui instrumento essencial ao pleno exercício da defesa.
“O Regimento Interno do STF nada dispõe quanto à impossibilidade de uso de celulares ou outros aparelhos tecnológicos por parte dos advogados durante a realização de atos processuais solenes. O impedimento do uso desses equipamentos não encontra amparo legal, inexistindo entendimento jurisprudencial da Suprema Corte que confira validade a tal postura abusiva e violadora das prerrogativas profissionais”, destaca.
Na mesma linha, o advogado criminalista Gustavo Scandelari, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), considera que a proibição do uso de celulares por advogados da defesa “avilta toda a classe”. O celular, afirma, é ferramenta de trabalho e sua restrição não pode ser tratada como trivial. “Um advogado que esteja impedido de usar seu celular está incomunicável, inclusive com seus colegas de escritório e com sua própria família. Isso pode gerar consequências irreparáveis”, afirma.
Scandelari ressalta que tornar o advogado “incomunicável” é medida excepcionalíssima no ordenamento jurídico brasileiro, aplicada, por exemplo, apenas a jurados em serviço. “A incomunicabilidade de uma pessoa é algo excepcional e quando ela é necessária, é prevista em lei, a exemplo dos jurados em serviço”, afirma.
Juristas criticam silêncio da OAB e alertam para risco de institucionalização da prática
A falta de reação mais firme por parte das instituições representativas da advocacia, principalmente a OAB, também foi alvo de críticas. Lamarques acredita que a OAB precisa assumir uma postura mais combativa diante de abusos desse tipo. Ele observa que, enquanto Judiciário e Ministério Público mantêm forte coesão institucional, a advocacia permanece mais fragmentada e, por vezes, vulnerável. “Precisamos unir esforços e exigir respeito aos advogados e às prerrogativas inerentes à profissão”, diz o advogado.
Scandelari lembra que, em abril de 2025, a OAB se posicionou contra a proibição e lacração de celulares de advogados durante um julgamento no STF, e afirma que esse tipo de manifestação deve se tornar regra, não exceção. “Os advogados esperam sempre uma atuação firme da OAB quando as prerrogativas da classe são violadas”, afirma.
Procurada, a OAB informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que, por enquanto, não vai se manifestar sobre o caso.
Restrição pode ser contestada judicialmente
Embora não se trate, automaticamente, de um vício processual, a restrição pode ser questionada judicialmente, especialmente se houver prejuízo concreto à atuação da defesa. Scandelari pondera que o cerceamento de defesa exige demonstração prática: é necessário que a defesa comprove que precisou do celular durante o ato e que sua impossibilidade de uso comprometeu a estratégia defensiva ou a garantia dos direitos do réu.
Já Lamarques entende que a configuração do cerceamento é mais evidente. Para ele, impedir a defesa de utilizar seus meios de trabalho sem justificativa válida já constitui, por si só, uma violação à legalidade do ato. “Esse tipo de restrição não só pode, como deve ser entendido como cerceamento de defesa, pois impede o livre exercício profissional, impondo barreira ilegal à defesa do acusado. Tamanha arbitrariedade jamais pode ser admitida em um Estado Democrático de Direito”, afirma.
Especialistas apontam caminhos para reação institucional
Diante de situações como a ocorrida no STF, os entrevistados sugerem que os advogados registrem protesto formal em ata, solicitem a presença da OAB no ato e, em casos mais graves, acionem corregedorias e comissões de prerrogativas. Scandelari observa que é possível, inclusive, recusar a participação no ato, caso a violação seja manifesta.
Para Lamarques, o mais perigoso é a naturalização dessas práticas. “A conformidade pode conduzir à dominação”, afirma. Ele defende que a advocacia, em conjunto com o Congresso, precisa estabelecer freios legais às “abusividades estatais” e impedir que medidas excepcionais, como o impedimento ao uso do celular, se tornem regra.
“Urge que sejam colocados limites nessa postura desenfreada que vem sendo adotada pelo STF hoje, para se evitar que, no amanhã, essas práticas sejam adotadas como ‘regra’ pelas demais instâncias do Judiciário, em prejuízo da defesa, do acusado e da liberdade”, conclui Lamarques.
Fonte. Gazeta do Povo