
Um projeto de lei que prevê a proibição de qualquer mudança na Bíblia Sagrada, atualmente tramitando no Senado, tem dividido opiniões entre cristãos. A proposta foi aprovada em novembro de 2023 na Câmara e, após aprovação na comissão de Direitos Humanos do Senado, encontrou maior resistência na comissão de Educação e Cultura.
Na prática, o texto veda qualquer alteração, edição ou adição aos textos, tanto da Bíblia Católica, que possui 73 livros, quanto da Protestante, com 66.
“Qualquer alteração na redação deste livro é um ato mais que absurdo, flagrantemente uma intolerância religiosa e uma grande ofensa para a maioria dos brasileiros”, diz o deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), autor do projeto de lei. “Não se pode permitir possibilidades para que nunca esse livro sagrado seja tocado em nenhum momento da nossa existência, por isso nossa legítima preocupação em tombar esse texto com um projeto no Parlamento.”
Apesar disso, o texto vem sendo apontado como inconstitucional por juristas, e há grande preocupação entre os próprios cristãos quanto a conceder ao Estado a permissão de ser “guardião” da Bíblia Sagrada.
Estado não pode ser designado para tutelar textos bíblicos, diz teólogo
Na avaliação do teólogo e pastor batista Franklin Ferreira, doutor em Divindade pelo Puritan Reformed Teological Seminary, nos Estados Unidos, o projeto de lei expressa intenção “boa e zelosa” do autor, mas que não o isenta de erros – sobretudo ao tentar proteger a Bíblia por meio do Estado.
“Ao tentar defender a Bíblia por meio do Estado, ele contraria os próprios princípios bíblicos, que exaltam tanto a soberania de Deus sobre sua Palavra quanto a liberdade da Igreja diante do poder civil”, diz o teólogo, que é reitor e professor do Seminário Martin Bucer, com sede em São Paulo.
“O papel do Estado não é determinar como a Bíblia deve ser impressa, mas garantir que ninguém seja impedido de crer, traduzir, ensinar ou pregar livremente. Não precisamos do Estado para proteger a Palavra de Deus – apenas para assegurar a liberdade que o próprio Criador concedeu a todo ser humano para anunciar sua fé com consciência e fidelidade”, declara.
Para o teólogo, embora o projeto de lei nasça de um zelo religioso compreensível, “ele se mostra equivocado em seus fundamentos teológicos, eclesiásticos, linguísticos, práticos e constitucionais e, por isso, deve ser rejeitado”.
Texto é inconstitucional e pode prejudicar liberdade religiosa no país
Como explica o diretor técnico do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), Warton Hertz de Oliveira, o projeto de lei que proíbe alterações na Bíblia é inconstitucional e capaz de gerar prejuízos sensíveis à liberdade religiosa.
“A proposta fere ao mesmo tempo dois pilares constitucionais. Primeiro, fere a liberdade de religião e crença, conforme disposto no artigo 5º. Em segundo, fere o artigo 19, inciso I, que veda o Estado não só de ‘estabelecer cultos religiosos ou igrejas’, mas também de ‘subvencioná-los ou embaraçar-lhes o funcionamento’”, diz Oliveira, que é mestre em Teologia e especialista em Direito Religioso. “É um projeto de lei inconstitucional, sem dúvida”, prossegue.
O representante do IBDR aponta, ainda, outras complicações possíveis quanto à aplicação da proposta, caso viesse a se tornar lei, como o impedimento de traduções para idiomas de tribos indígenas dentro do território brasileiro e a proibição de atualizações linguísticas para alcançar a linguagem corrente.
“Qual seria a versão-base para proibir a edição, correção ou atualização? Qual seria a Bíblia original na língua portuguesa? Seria João Ferreira de Almeida? Seria a Bíblia de Jerusalém? Seria a Nova Versão Internacional? A gente não tem resposta para isso”, pontua.
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Em audiência convocada por Damares, religiosos rejeitam proibir alterações na Bíblia
Uma audiência no Senado ocorrida em 30 de outubro, requerida pela senadora Damares Alves (Republicanos-DF) – com juristas e representantes de diferentes denominações, tanto evangélicas quanto católicas –, evidenciou a resistência de parte significativa dos religiosos quanto à proposta.
“Esse projeto chamou a atenção da sociedade brasileira. O que passou de forma fácil e unânime na Câmara, no Senado a sociedade tomou conhecimento da matéria, e as instituições religiosas tomaram conhecimento e pediram que o Senado não aprovasse sem antes ouvir os interessados”, disse a senadora.
Damares defendeu a boa intenção do deputado autor da proposta, mas fez ressalvas. “Ele ama tanto a Bíblia que quer proteger o livro sagrado. Mas a gente vai discutir se a forma como está escrito é a melhor forma. E essa comissão vai decidir: precisamos ou não, no Brasil, desse projeto de lei aprovado?”, declarou.
Um dos convidados, Renato Gugliano Herani, doutor em direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e representante da Igreja Universal do Reino de Deus, enfatizou que conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), não é permitido o controle estatal sobre questões da fé. “O Estado passaria a tutelar a sacralidade de um cânon, atuando como um guardião teológico, deslocando o estado laico”, disse Herani durante a audiência.
Já o doutor em Teologia pela Universidade de Basileia (Suíça), Rudolf Eduard von Sinner, argumentou que o projeto inibiria a liberdade de interpretação das religiões. “O projeto não estabelece com clareza o objeto de proteção. Se essa lei passar, o Congresso Nacional teria que compor uma comissão para decidir qual seria a versão correta. Não sei se o Congresso quer assumir essa tarefa e é certo que, em algum momento, haveria judicialização da questão”, declarou.
Por fim, o representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), padre Cássio Murilo Dias da Silva, também apontou a dificuldade de entender um texto bíblico definitivo que pudesse ser classificado como original. “Nesse projeto, a Bíblia deixa de ser Palavra de Deus para ser palavra humana ou palavra do Congresso. Optar por um texto seria destruir o esforço para o diálogo inter-religioso e ecumênico”, disse.
Riscos de deturpação da Bíblia existem
Apesar das consequências apontadas por teólogos ao transferir a tutela da interpretação bíblica para o Estado, há riscos que devem ser considerados pelos cristãos quanto a traduções que deliberadamente induzem a erros teológicos por interesses políticos ou ideológicos, como aponta Franklin Ferreira.
Um exemplo clássico é a chamada Jefferson Bible – obra em que Thomas Jefferson removeu milagres, elementos sobrenaturais e passagens doutrinárias para apresentar apenas os ensinamentos morais de Jesus. Outro caso é a Queen James Bible, lançada em 2012 nos Estados Unidos, uma adaptação anônima da versão King James que alterou oito versículos com o propósito declarado de eliminar interpretações consideradas homofóbicas. A edição acabou ficando conhecida como a “Bíblia Gay”.
“Traduções bíblicas moldadas por agendas ideológicas representam um grave perigo porque destroem a autoridade da Escritura e substituem fidelidade textual por propaganda. Retratar Jesus como um revolucionário socialista ou apóstolos como homossexuais, por exemplo, não é tradução, mas distorção consciente do Evangelho e da história, criando narrativas sem base textual nem teológica”, explica Ferreira.
“Isso confunde leitores, enfraquece a confiança na Bíblia e introduz relativismo espiritual. Por isso, a Igreja deve insistir em traduções feitas com temor a Deus, rigor acadêmico e submissão ao texto original”, destaca o doutor em Teologia.
Fonte. Gazeta do Povo


