Era abril de 1984. Eu tinha pouco mais de vinte anos e muitos sonhos na cabeça, quando participei do comício das Diretas Já, no coração da cidade do Rio de Janeiro. O ato cívico-partidário reuniu um milhão de pessoas na Candelária e ocupou toda a avenida Presidente Vargas e ruas adjacentes, especialmente a avenida Rio Branco.
Não tinha memória de movimento tão gigantesco e expressivo, reunindo sociedade civil, igreja, poderes públicos e privados, partidos políticos e classe artística. Sei que em junho de 1968, tinha ocorrido a Passeata dos Cem Mil, com forte impacto na vida política da época. O Brasil vivia há quatro anos sob o regime autoritário e meses depois seria instituído o famigerado AI-5, que endurece ainda mais as liberdades individuais, intervindo em todas as esferas do estado brasileiro.
No fim de semana voltei às ruas –atualmente moro na cidade de São Paulo– para participar das manifestações contra a impunidade imposta pela Câmara dos Deputados em benefício da turma golpista de 8 de janeiro.
A avenida Paulista estava tomada de gente de todas as cores e bandeiras. O clima tropical, com sol forte durante a manhã e pancadas de chuvas na tarde, deu o tempero que faltava para “lavar a alma” de cerca de cinquenta mil manifestantes, que protestaram por justiça, não anistia e democracia.
Impressiona saber como a aglomeração de tanta gente chega a um padrão de harmonia e maravilhosa não-violência. Em São Paulo, a bandeira gigante do Brasil deu o sentido de patriotismo, simbolizando o anseio nacional pela pacificação do país.
No Rio de Janeiro não foi diferente. Tendo à frente seus mais expressivos símbolos artísticos – Gil, Caetano, Djavan e Chico Buarque –, o ato público teve gostinho de show aberto à população, uma espécie de woodstock tupiniquim, por sua natureza pacífica, a busca por valores morais e sociais de sociedade livre, justa e igualitária, semelhante ao icônico festival dos idos de 1969, ocorrido em Bethel, Nova York.
A presença solar de representantes do nosso melhor cancioneiro, vozes que experimentaram a dureza do regime repressor com a tomada do poder pelos militares, trouxe um novo ar de esperança e alívio para uma nação que, ao que parecia, estava a reboque de políticos alheios à vontade do povo brasileiro.
Lembro-me até hoje o tom forte da voz de Fafá de Belém entoando o hino nacional. Senti falta dele nas ruas desta vez. A voz grave da paraense ajudou a animar a massa humana que alimentou as ruas da nação naquele período histórico de virada do regime autoritário para o democrático.
A perspectiva agora é que o eco da voz do povo ouvido no último domingo possa estremecer as paredes de Brasília e chamar à razão o Parlamento para suas responsabilidades constitucionais e republicanas, enquanto nação livre, independente e soberana.
Outra novidade é que o movimento popular e de massa se reencontrou. Por tabela, a bandeira do Brasil foi devolvida aos brasileiros –independente de ideologia e cor partidária. Nada a ver a bandeira americana como panteão de atos e passeatas. Ninguém merece isso.
Estou esperançoso. Do jovem que fui há quarenta anos, com pouca experiência de movimento estudantil, a homem maduro, com responsabilidade e opinião, muita coisa mudou. E penso, precisa continuar mudando.
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Fonte.:Folha de S.Paulo


