
A lua de mel de quase seis anos entre o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e mais de uma dezena de ONGs e movimentos sociais alinhados à esquerda que integram a ADPF 635 – chamada “ADPF das Favelas” – foi sacudida nos últimos dias após a Operação Contenção, realizada na terça-feira (28), nos complexos do Alemão e da Penha.
A ADPF, ajuizada pelo PSB no Supremo Tribunal Federal (STF), foi responsável pela criação de uma série de restrições à ação da polícia dentro de comunidades, que perduraram de 2020 a abril deste ano – período de fortalecimento sem precedentes das facções criminosas locais.
A primeira grande operação policial realizada após o encerramento do processo ocorreu na semana passada, resultando em 113 detenções e 121 mortes, incluindo quatro policiais.
O motivo para o desentendimento entre o PSB e as ONGs tem a ver com o partido ter designado novos advogados no processo que corre no STF, após a equipe do advogado Daniel Sarmento, responsável pela ação desde o início da ação, em 2019, ter feito uma petição considerada inapropriada – e sem o aval do partido – na quarta-feira (20), dia seguinte à operação policial.
Na ocasião, os advogados classificaram a ação como “chacina” e acusaram as forças policiais não só de terem ignorado protocolos de atuação impostos pelo STF, mas também de terem cometido execuções, torturas e esfaqueamento contra dezenas de pessoas. As acusações foram rechaçadas pelas polícias Militar e Civil, que apontam que, na madrugada pós-operação, os próprios membros do Comando Vermelho teriam forjado ferimentos nos corpos abatidos ao longo do dia para inflar a opinião pública contra a polícia.
No entanto, o que mais pesou contra a equipe jurídica foi um pedido para que o STF retirasse as investigações sobre a operação policial das mãos das autoridades estaduais, em especial do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), e as transferisse para o âmbito federal. Caso o pedido seja aceito pelo novo relator da ADPF 635, ministro Alexandre de Moraes, o Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal (PF) assumiriam as investigações, sob a supervisão do STF.
Nos bastidores, a manifestação feita pela equipe de Daniel Sarmento foi muito mal recebida, não apenas pelo fato de a executiva do PSB não ter sido consultada, mas também pelo peso político do pedido de federalização. Na prática, a solicitação atesta uma posição oficial do partido de que o governo do Rio de Janeiro não seria confiável para apurar eventuais abusos.
Em paralelo, uma atuação incisiva do PSB contra a operação policial significaria risco de desgaste popular ao partido, após anos de defesa contundente de restrições à atuação policial dentro de comunidades dominadas pelo crime organizado, e agora às vésperas de ano eleitoral. Pesquisas recentes têm mostrado um grande apoio da população do Rio de Janeiro a operações da polícia contra o crime organizado.
Por essas razões, horas após Daniel Sarmento apresentar a petição ao STF, o PSB nomeou uma nova equipe jurídica. Em 30 de outubro, um dia após a nomeação dos novos defensores, os quatro advogados que até então eram responsáveis pela ADPF renunciaram ao mandato.
ONGs manifestam “profunda indignação” com o PSB
O desentendimento que acabou afastando a equipe de Sarmento gerou indignação em um grupo de ONGs e movimentos sociais conhecidos pela crítica à polícia. Parte dessas entidades participam da ADPF 635 como amicus curiae, ou seja, fornecendo subsídios ao tribunal sem ser parte do processo.
Em nota de repúdio publicada ainda no dia 30, 17 entidades manifestaram “profunda indignação” com a decisão do PSB de constituir novos advogados. “A decisão da Executiva Nacional do PSB constitui um severo ataque à defesa dos direitos humanos, em especial das populações negras e faveladas, justamente quando nos deparamos com a maior chacina do Estado do Rio de Janeiro”, menciona trecho da nota.
As ONGs dizem, ainda, que “nenhuma disputa partidária ou cálculo eleitoral pode se sobrepor à defesa da vida, da verdade e da justiça”, e que a conduta do partido não condiz “com a tradição democrática e socialista que o PSB historicamente buscou representar”.
Daniel Sarmento era figura central na estratégia de limitar ações da polícia via STF
A participação do escritório de Sarmento – que incluía os advogados Ademar Borges, João Gabriel Pontes e Eduardo Adami – era vista pelas ONGs como determinante para que prosperassem as restrições à presença policial dentro de comunidades dominadas por facções criminosas.
Isso porque a própria ADPF não nasceu do PSB, mas foi uma iniciativa dos quatro advogados junto com organizações não governamentais conhecidas pela crítica às forças de segurança. A ideia nasceu em 2019, dentro da chamada Clínica de Direitos Fundamentais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – núcleo com histórico de atuação militante em direitos humanos. O fundador do chamado “UERJ Direitos” é o próprio Daniel Sarmento, que é professor da instituição.
Todos os demais membros da equipe jurídica que compunha a ADPF até o último dia 29 fazem parte da coordenação desse núcleo da UERJ. Enquanto representavam o partido perante o STF, os advogados mantinham contato próximo com o grupo de ONGs, que endossavam as petições judiciais no processo.
Segundo a Constituição Federal, organizações não governamentais não podem ingressar com ações no Supremo Tribunal Federal (STF), mas partidos políticos, sim. A viabilidade da ADPF 635 se deu pela aproximação do grupo de Sarmento com o PSB, em especial com a figura do ex-deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ).
Molon foi o principal articulador político do ajuizamento da ação junto ao STF em 2019, quando era o líder da bancada do PSB na Câmara dos Deputados. Após ficar sem mandato, em 2023, perdeu influência dentro do partido, o que enfraqueceu politicamente a defesa da ADPF.
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Segundo fontes ouvidas pela reportagem, a mudança da equipe jurídica representa um movimento político mais cauteloso do PSB em relação à segurança pública que deve se estender a uma parte considerável da esquerda, sobretudo às vésperas do ano eleitoral e em meio à comoção popular favorável à operação policial.
Além do movimento estratégico do PSB, outras figuras relevantes da esquerda evitaram críticas à ação da polícia, ou mesmo a elogiaram, como foi o caso do vice-presidente nacional do PT, Washington Quaquá. O petista contrariou o posicionamento de muitos aliados do partido e de membros do governo e declarou apoio à ação. “Ninguém enfrenta fuzil com beijinhos. Se enfrenta fuzil dando tiro em quem está com fuzil”, afirmou em um vídeo publicado em uma rede social.
Apesar disso, o presidente Lula (PT) fez duras críticas à operação conduzida pelo governo do Rio de Janeiro, classificando-a como “matança”, e evitou se solidarizar com a morte dos policiais durante o cumprimento da missão.
Para Luan Sperandio, analista político e diretor de operações do Ranking dos Políticos, os episódios recentes indicam um movimento de ajuste no discurso da esquerda. “Há, sim, uma percepção de que parte da esquerda está com urgência de calibrar seu discurso sobre segurança pública diante da ampla aprovação popular das megaoperações. Não se trata de uma guinada abrupta, mas de uma tentativa de incorporar a pauta da segurança pública de modo mais pragmático, reconhecendo o clamor popular e a necessidade de resultados concretos”, explica.
Segundo Sperandio, o desafio de setores da esquerda e, principalmente, do governo Lula, será se reposicionar na defesa dos direitos humanos sem abrir mão da firmeza no combate ao crime. “O desafio é transformar essa visão em propostas e resultados que dialoguem com a realidade das ruas”, aponta.
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À Gazeta do Povo, o partido enviou a seguinte nota sobre a troca da equipe de advogados: “A Executiva Nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB) decidiu indicar integrantes de sua coordenação jurídica para também atuarem na representação na ADPF 635. E respeita a decisão do advogado Daniel Sarmento de se afastar do caso”.
Já o escritório de Daniel Sarmento não retornou o contato feito pela reportagem.
Fonte. Gazeta do Povo


