
Crédito, Arquivo Histórico Fundação Oswaldo Cruz
- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Na virada do século 19 para o século 20 um acalorado debate no meio científico envolvia as teorias sobre como doenças infecciosas eram transmitidas.
De um lado ainda havia quem defendia a teoria miasmática, ou seja, que as pessoas adoeciam quando ficavam em contato com o ar pestilento — emanações nocivas vindas de decomposição de matéria orgânica, de lixo, de esgotos, cemitérios etc.
De outro, principalmente depois de descobertas de cientistas como o francês Louis Pasteur (1822-1895), havia os que defendiam que microorganismos específicos causavam doenças específicas.
Um mosquitinho hoje conhecido como Aedes aegypti esteve no epicentro dessa batalha no início do século passado, quando um esforço capitaneado pelo médico e cientista Adolfo Lutz (1855-1940) buscava uma solução para os recorrentes surtos de febre amarela.
Em São Paulo, Lutz dirigia o Instituto Bacteriológico. E um de seus assistentes era o médico Arthur Vieira de Mendonça (1868-1915), defensor da teoria do miasma.
“Nunca se viu animal tão caprichoso como esse pernilongo. Infelizmente, porém, ele hoje é o inimigo único — fantasma que o governo persegue de maneira atroz; mas ele há de trazer nas suas asas o ridículo para a classe médica e levar nas mesmas asas o dinheiro do Estado”, escreveu Mendonça.
“Foi uma briga danada no Instituto. O Mendonça se exonerou”, comenta à BBC News Brasil o historiador Jaime Larry Benchimol, pesquisador na Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz, e autor de, entre outros, Dos Micróbios aos Mosquitos (Editora Fiocruz, 1999).
Autor do livro Uma doença americana? A Leishmaniose Tegumentar e a Medicina Tropical no Brasil (1909-1927) (Editora Primas, 2017) e também pesquisador na Casa de Oswaldo Cruz, o historiador Denis Guedes Jogas Junior ressalta à BBC News Brasil que Adolfo Lutz “teve um papel fundamental na aderência da teoria dos mosquitos no contexto brasileiro” e a defesa dessa aplicação no Brasil deve ser vista como “o cerne do trabalho” dele.
A teoria dos mosquitos
Era uma contenda que vinha de décadas atrás e tinha paralelos em várias partes do mundo. Em 1897, o britânico Ronald Ross (1857-1932) descobriu que a malária era transmitida pelo mosquito Anopheles.
“Então muitos pesquisadores mundo afora se voltaram para a febre amarela”, diz Benchimol. O raciocínio seria o mesmo.
Em Cuba, o médico Carlos Juan Finlay (1833-1915) já tinha chegado a essa conclusão, anos antes. Somente em 1900, contudo, com a confirmação de uma comissão norte-americana, essa proposta se tornaria internacionalmente reconhecida.
“Antes ninguém deu bola. Mas aí com a descoberta dos ingleses, os americanos passaram a se voltar para a questão”, explica Benchimol.
Na mesma época, o brasileiro Adolfo Lutz fazia o mesmo no interior de São Paulo.
“Ele começou a estudar a distribuição do mosquito, lembrando dos hábitos domiciliares. Ele vai fixar sua atenção em um mosquito que eles chamavam de Culex fasciatos“, contextualiza o historiador.
Era o mosquito que hoje é mais conhecido por transmitir a dengue — que anos mais tarde seria denominado Stegomyia fasciata e, só a partir da segunda década do século passado seria entendido como Aedes aegypti.
“Só nos anos 1920 vai se chamar Aedes aegypti. E na época ele era considerado unicamente transmissor da febre amarela, mais tarde seria associado também à dengue e outras doenças virais”, explica Benchimol.
A infectologista e epidemiologista Silvia Maria Gomes de Rossi, ex-professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, diz à BBC News Brasil que para comprovar a teoria da transmissão pelo inseto Lutz inclusive se deixou “picar por mosquitos infectados”.
“Ele e outros bacteriologistas contemporâneos enfrentaram a resistência dos médicos que defendiam que as doenças eram transmitidas por miasmas”, explica à BBC News Brasil a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza, professora aposentada do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia e autora do livro A Gripe Espanhola na Bahia (Editora Fiocruz, 2009).
“A bacteriologia, contudo, acabou por se impor à teoria miasmática. Com a descoberta do agente causal era possível tomar medidas para tentar impedir a transmissão.”
Isso fez de Lutz um pioneiro em terras sul-americanas. “Foi quem demonstrou aos brasileiros a teoria de transmissão da febre amarela”, ressalta a historiadora.
Notoriedade científica, vale ressaltar, ele já tinha.
Trajetória
Filho de um casal de suíços que morava no Rio de Janeiro e neto de um proeminente médico chamado Friedrich Jacob Lutz (1785-1861) — que havia chefiado o serviço médico do exército da Confederação Helvética —, Adolfo Lutz retornou à Berna de sua família com 2 anos de idade.
Foi lá que estudou até se graduar médico aos 22 anos, em 1879. Então acostumou-se a passar temporadas em diversos países, estudando o que havia de mais avançado em sua área.
Em Londres, assistiu a aulas de Joseph Lister (1827-1912), pioneiro nas técnicas de antissepsia e conhecido como pai da cirurgia moderna. Passaria ainda por Leipzig, Viena, Praga e Paris — nesta, teria conhecido Pasteur.
Em 1881 retornou ao seu país natal, o Brasil. Ficou seis anos trabalhando como clínico geral em Limeira, no interior paulista.

Crédito, Arquivo Histórico Fundação Oswaldo Cruz
Lutz, contudo, queria pesquisar. Resolveu passar um tempo trabalhando com o germânico Paul Gerson Unna (1850-1929), pioneiro da dermatologia, para estudar doenças infecciosas e medicina tropical.
De lá, recebeu um convite para trabalhar no Havaí, onde pesquisou a hanseníase. Ainda passaria um tempo atuando na Califórnia antes de retornar em definitivo ao Brasil, em 1893.
Renomado internacionalmente, ele voltou para assumir a direção do Instituto de Bacteriologia, em São Paulo. Nessa época, começou-se a investir em pesquisas sanitárias no país.
“Era um tempo em que o Brasil era assolado por doenças epidêmicas, especialmente os centros urbanos. Isso atrapalhava o comércio, afastava os investidores estrangeiros, matavam os trabalhadores das ferrovias”, contextualiza a historiadora Souza.
“Era uma época em que o Brasil buscava se modernizar, inclusive na ciência, e também havia a necessidade de combater várias epidemias, cuja epidemiologia era mal conhecida”, acrescenta a infectologista Rossi.
Foi quando ele se aproximou de dois grandes nomes da medicina paulista, Emílio Ribas (1862-1925) e Vital Brazil (1865-1950). Juntos atuaram para conter uma epidemia de peste bubônica que ocorreu em Santos, por exemplo.
Versátil
Conforme nota o historiador Benchimol, Lutz passou a integrar o que era a “vanguarda dos processos de instituição das medicinas pasteuriana e tropical e de sua instrumentalização em proveito da saúde pública”, fenômeno que ocorria tanto em São Paulo quanto no Rio.
Lutz estudou diversas doenças e seus mecanismos de contágio. Viajou pela país para compreender como cólera, peste bubônica, febre tifóide, malária, ancilostomíase, esquistossomose e leishmaniose eram transmitidas.
Foi o responsável por identificar o blastomicose sul-americano, patologia endêmica transmitida por um fungo que é conhecida popularmente como doença do tatu ou doença do capim.
E, claro, ao estudar e confirmar os mecanismos de transmissão da febre amarela abriu caminho para os estudos do mosquito que depois seria conhecido como Aedes aegypti — e até hoje um inseto problemático na saúde pública, por conta da transmissão de doenças como dengue, zika e chikungunia.

Crédito, Domínio Público
Lutz também é lembrado como um pioneiro do estudo de propriedades terapêuticas de plantas e como zoólogo, tendo descrito espécies então desconhecidas de anfíbios e insetos.
“Como não era incomum nessa época, Lutz era um cientista muito versátil, que passou por vários campos do saber”, afirma Joga Junior.
O historiador lembra que Lutz foi o orientador da “primeira tese de entomologia médica” do país, o trabalho de doutoramento do médico Celestino Bourroul (1880-1958), chamado Mosquitos do Brasil.
“Ele era qualificado em várias áreas da medicina experimental. E se destacava em estudos que estavam em voga na época: sobre micróbios, parasitas e seus hospedeiros”, situa a historiadora Souza.
Em sua homenagem, uma espécie de perereca descoberta em 2017 no Cerrado recebeu seu sobrenome na denominação científica: Aplastodiscus lutzorum.
‘Jardim de infância da ciência’
Quando se aposentou, em 1908, aceitou o convite do médico Oswaldo Cruz (1872-1917) para trabalhar no instituto que hoje se chama Fundação Oswaldo Cruz. Ficaria ali até a morte, prestes a completar 85 anos, em 6 de outubro de 1940.
No Rio, ele foi um dos guias do clubinho informal que Oswaldo Cruz chamava de “jardim de infância da ciência”.
“Eles se reuniam semanalmente para estudar as principais publicações científicas. Eram rodadas de estudo com os artigos mais relevantes publicados nas principais revistas acadêmicas internacionais”, contextualiza Joga Junior.
Os estudos de Lutz têm uma importância interessante também sob a perspectiva atual, ou seja, dentro de uma compreensão de que o clima está sofrendo mudanças drásticas.
“Não se falava [em sua época] sobre mudanças climáticas. Mas os médicos consideravam que o clima influenciava a incidência de certas doenças”, comenta Souza.
Essa habilidade de Lutz em compreender o impacto do ambiente na proliferação de doenças ficou clara em um episódio específico: a descoberta quanto à transmissão da malária silvestre.
“Ele verificou que águas acumuladas nas bromélias eram ambiente rico para a proliferação de mosquitos, de insetos. E encontrou o transmissor”, explica o historiador Benchimol.
Na época, a doença assolava trabalhadores na obra de duplicação da linha ferroviária que ligava o Porto de Santos a São Paulo.
“Lutz era um cara que diferia muito de seus pares na época. Ele tinha uma visão muito ampla dos processos médicos e biológicos. Era um bom médico, mas também era zoólogo, entomologista, dominava a microbiologia e tinha uma atenção muito aguda para essa problemática ambiental”, diz Benchimol.
Isso fazia com que o médico tivesse uma atenção muito grande sobre os ciclos de vida dos insetos e dos parasitas, compreendendo como variações ambientais impactam nesse desenvolvimento.
Entendimento raro na época e, hoje, muito plausível nos contemporâneos tempos de aquecimento global. Jogas Junior ressalta que os estudos de Lutz “têm relações com as questões contemporâneas de mudanças climáticas e novas arboviroses como zika e chikungunya”.
O historiador lembra que até mesmo o fato de que o Aedes aegypti hoje perdeu a capacidade vetorial de transmitir a febre amarela, questão que ainda não experimenta consenso na comunidade científica, pode se amparar por uma concorrência evolutiva e ter alguma relação com as mudanças ambientais.
“Ele estudava várias doenças que dependem do meio ambiente, então tudo que afeta o ecossistema também impacta na transmissão dessas doenças”, afirma a médica Rossi.
“Poucos dos seus colegas [naquele momento] tinham as habilidades necessárias para essa grande angular que combinava estudos de microbiologia, de parasitologia e de ambiente”, elogia Benchimol.

Crédito, Governo do Estado de São Paulo
Para o historiador, Lutz é menos lembrado do que seus colegas como Chagas, Cruz e Brazil “porque era um sujeito muito avesso à publicidade”. “Não gostava de entrar em grandes embates públicos, embora em São Paulo ele tivesse travado controvérsias com médicos”, frisa o pesquisador.
“Era um sujeito muito cuidadoso, que tinha total aversão a entrar na seara pública, ao contrário de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Vital Brazil que eram líderes de instituições e atuavam na esfera pública e política para defender seus projetos.”
“Lutz com certeza era o mais versátil e o mais preparado pesquisador do final do século 19 e início do século 20 no campo médico brasileiro”, ressalta Joga Junior.
“Era um sábio. E os seus colegas tinham respeito, tinham consideração enorme pelo saber dele”, diz Benchimol.
Ele tinha a mania de sempre usar o termo “precisamente” para explicar as coisas.
“Um cacoete”, comenta o historiador. Mas que diz muito sobre a necessidade de precisão do cientista.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL