Em São Paulo, a “Masterclass de Liberdade de Expressão”, uma iniciativa do Instituto Sivis em parceria com a Faculdade Belavista, reúne interessados e especialistas durante esta semana. No segundo dia do evento, realizado nesta terça-feira (15), o encontro teve como principal objetivo um aprofundamento histórico sobre a regulação da internet no Brasil e suas implicações na liberdade de expressão.
O dia foi marcado pelas palestras de Ana Luiza Braga, professora na Faculdade Belavista e doutora em Filosofia e Teoria Geral pela Universidade de São Paulo (USP), e de Carlos Affonso Souza, doutor em Direito Civil, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS) e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Ambos destacaram os desafios de atualizar o arcabouço legislativo brasileiro para acompanhar a dinâmica da internet, alertando também para o risco de respostas apressadas que possam comprometer direitos fundamentais.
Perspectiva histórica e a crise da liberdade de expressão
A doutora Ana Luiza Braga apresentou uma análise histórica da liberdade de expressão e destacou a atual crise que afeta esse direito fundamental, ressaltando tratar-se de um problema global, não apenas nacional. A partir disso, a professora enfatizou que a Constituição Federal de 1988 assegura a livre manifestação do pensamento (Art. 5º), vedando o anonimato e a censura prévia, com um modelo de coibição de abusos sempre posterior ao discurso.
Ela também frisou que o Supremo Tribunal Federal (STF), em vez de definir novos princípios, deveria aplicar os dispositivos constitucionais da liberdade de expressão conforme uma construção histórica e doutrinária de séculos. A jurista alertou ainda para uma “crise da cultura da liberdade de expressão”, relacionada, em sua visão, à busca excessiva por segurança e conforto que inibe o diálogo.
“A liberdade de expressão existe quando estamos abertos e disponíveis para ouvir, inclusive, as coisas desconfortáveis”, afirmou. Ana Luiza Braga classificou como “o maior atentado à liberdade de expressão na atualidade” a decisão do STF sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que trata da responsabilidade de plataformas pela remoção de conteúdos.
Segundo ela, o tribunal alterou um dispositivo que levou uma década de discussões para ser aprovado, incluindo consultas públicas e audiências no Congresso. “O STF entendeu que havia uma inconstitucionalidade nesse dispositivo. Mas não existe inconstitucionalidade, é uma questão de política legislativa”, defendeu.
Brasil tem necessidade de adequação legal
O diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, por sua vez, mergulhou na jornada dos últimos 30 anos de tentativas de regulação da internet. Ele fez um panorama histórico, incluindo exemplos internacionais, que mostraram como a responsabilização de plataformas tornou-se um tema central nos debates sobre tecnologia.
No Brasil, Souza destacou o projeto de lei (PL) 84/1999 (conhecido como PL Azeredo, em referência ao ex-senador Eduardo Azeredo) como a primeira tentativa legislativa geral no país, voltada principalmente à criminalização de condutas digitais, como a cópia de CDs. Abordou ainda o PL 2630, conhecido como “PL das Fake News”, que não foi aprovado no Congresso, apesar dos intensos debates durante a pandemia de Covid-19.
Na análise, ele afirmou que, além de ser um tema difícil para formar consensos no Congresso, o projeto estava mal acabado. “O PL começou como um projeto para combater desinformação, mas no final já estava discutindo remuneração do trabalho jornalístico, direitos autorais… Ele foi se agigantando, e aí se tornou cada vez mais difícil alcançar consensos sobre o texto”, explicou.
Souza enfatizou também que, embora o Marco Civil da Internet tenha sido um avanço importante, sua atualização não teria sido o suficiente para o futuro da regulação digital. “O problema é que a era dos códigos me parece que já passou”, afirmou.
Preocupa muito essa visão do Supremo sobre a liberdade de expressão como sendo o outro lado, o outro time.
Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do RJ
Ele sugeriu uma “reengenharia de leis esparsas que possam ser facilmente atualizadas e mais acessíveis”, reconhecendo a rapidez com que a tecnologia se transforma. O professor mencionou ainda a iminente reforma do Código Civil e o crescimento da literatura sobre direito digital, antecipando que esses temas ainda trarão “muita pauta”.
A atuação considerada atabalhoada do STF, que tem sido objeto de crescentes questionamentos sobre os limites do ativismo judicial, reflete a necessidade de que o sistema jurídico brasileiro se adapte a essa nova realidade. “Existe uma disputa entre liberdade de expressão de um lado e de proteção de direitos do outro. O que me parece uma dualidade artificiosa. Preocupa-me muito para o futuro essa visão do Supremo sobre a liberdade de expressão como sendo o outro lado, o outro time”, crava diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
“Alguns votos do STF parecem indicar que, se você está a favor da liberdade de expressão, você está contra a proteção de determinados direitos. E eu acho que é o contrário. A liberdade de expressão empodera os mesmos direitos”, defende.
Fonte. Gazeta do Povo