Meu primeiro passaporte, de janeiro de 1972, tem um detalhe curioso: ele não era só meu, mas também dos meus irmãos jovens. Com textos em português e em francês, ele deixava claro que o documento servia para os três, com as fotos deles estampadas logo abaixo da minha —um garoto de 9 anos com o olhar assustado de quem estava prestes a explorar o mundo.
Guardo isso até hoje, em parte como relíquia mas também porque ele traz uma preciosidade: meu primeiro carimbo de viagem. Está lá: em 5 de fevereiro de 1972 a Dirección Nacional de Migraciones da República Argentina permitia minha entrada “no permanente” no país por três semanas.
Quinze passaportes depois, eu me acostumo à notícia um tanto triste de que essa é uma espécie em extinção.
Cruzar as fronteiras com mais agilidade, com informações do viajante digitalizadas, é uma incrível evolução. Agradeço, porém lamento, já com saudade, o fato de que no futuro permanecerão imaculadas as páginas do nosso diário oficial de viagens.
Cada marca dessas traz uma história. Por exemplo, os registros de entrada no Charles de Gaulle, aeroporto de Paris, são certamente os mais numerosos. Mas no passaporte emitido em 1991 há um esquecido visto de entrada na França. E no de 1986, outra raridade: um visto para passar um dia (sem pernoite) em Berlim Oriental.
Lugares implausíveis, como Uzbequistão (2004), Tonga (1999) ou Guiné-Bissau (1998), enfeitam as páginas raiadas como pequenos troféus. E o simples ato de olhar o atestado de entrada nas Filipinas (2004) ou meu primeiro contato com a Índia (1986) me dá uma alegria como se eu recebesse um cartão-postal desses lugares.
Dos anos 2000 para cá, os países começaram a se modernizar e distribuir vistos que muitas vezes ocupavam toda uma página, fazendo com que a tinta aplicada brutalmente pelos agentes de imigração ficasse à margem de um adesivo rebuscado. Já era um mau sinal…
Hoje, mais e mais nações adotam a biometria para acelerar o processo da imigração. Mas o que me fez querer deixar aqui este réquiem foi a decisão da França de aposentar de vez os carimbos e adotar o sistema eletrônico nos aeroportos, algo que até abril de 2026 vamos encontrar não apenas lá mas em todos os países do espaço Schengen na Europa.
Na minha próxima viagem a Paris, talvez não ouça mais a simpática boas-vindas em francês: “Soyez le bienvenu, monsieur”. Com um pouco de sorte, uma voz de inteligência artificial me receberá com hospitalidade automática na catraca fria que vemos mais e mais por todo canto.
Mas mesmo que o próprio passaporte desapareça um dia —e acho que não estamos longe de poder cruzar o planeta usando apenas um chip com as informações necessárias para nosso itinerário—, eu dificilmente vou me desfazer dos meus 15 volumes, que, juntos, posso ainda pegar entre os dedos.
Sverig, Fiji, Sri Lanka, Kazakhstan, Mali, Schweiz, Kosovés, até mesmo um improvável carimbo escrito Isla de Pascua, mais como decoração, já que oficialmente o lugar mais longínquo de qualquer outro pedaço de terra no mundo faz parte do território chileno. Nomes assim vão ficar para sempre na minha gaveta de viagens.
Como se um carimbador maluco rodasse infinitamente pelo nosso planeta distribuindo pluncts, placts e zuns.
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Fonte.:Folha de S.Paulo


