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- Author, Laura Bicker
- Role, Correspondente na China, BBC News
Quando os tiros de canhão ecoaram pela Praça da Paz Celestial, antes mesmo do primeiro grupo de militares desfilar pela avenida central da capital chinesa, Pequim, a imagem mais marcante do dia já havia sido divulgada.
O presidente da China, Xi Jinping, deu as boas-vindas ao líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, com um longo aperto de mão.
Em seguida, ele cumprimentou o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e se sentou ao lado de dois dos líderes que mais receberam sanções no planeta.
Foi puro teatro político. E esta reunião (não a exibição de armamentos) é o que parece ter perturbado o presidente americano, Donald Trump.
No início do desfile, Trump enviou uma mensagem com linguagem incisiva na rede Truth Social. Ele acusou os três líderes de conspirarem contra os Estados Unidos.
O momento pode ter sido projetado para enfurecer o presidente americano — que talvez preferisse ter sido o centro da atenção mundial.
Mas o líder chinês roubou os holofotes e os usou para mostrar seu poder e influência sobre uma aliança liderada pelo Oriente, formando um grupo desafiador, determinado a pressionar a ordem mundial liderada pelos Estados Unidos.
Além de Kim e Putin, mais de 20 chefes de Estado estrangeiros estavam presentes.
No início da semana, Xi pareceu restabelecer seu conturbado relacionamento com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi.
A tarifa de 50% imposta por Trump à importação de produtos indianos despertou o descongelamento das relações entre os dois rivais de longa data.
O espetáculo de quarta-feira (3/9), em princípio, deveria comemorar os 80 anos da vitória contra o Japão na Segunda Guerra Mundial. Mas, na verdade, ela celebrava a posição para onde se dirige a China — direto para o topo, com Xi desempenhando o papel de um líder global.
E, aos seus pés, estavam suas Forças Armadas, que estão sendo desenvolvidas para rivalizar com o Ocidente.
A China tomou as rédeas
Esta foi a primeira vez em que Xi, Putin e Kim foram vistos juntos. E, juntos, eles subiram ao topo da Porta da Paz Celestial, com visão privilegiada para a praça histórica, para assistir ao desfile.
Foi difícil ignorar o simbolismo da cena.
Foi ali que o fundador da China comunista, Mao Tsé-Tung (1893-1976), declarou a fundação da república em 1949. E, 10 anos depois, foi ali que ele recebeu Kim Il Sung (1912-1994), avô de Kim Jong-un, e o então líder soviético Nikita Khrushchev (1894-1971), para assistir a um desfile militar.

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Aquela foi a primeira vez em que os líderes dos três países se reuniram.
Era o auge da Guerra Fria (1947-1991). A China estava isolada de boa parte do mundo, da mesma forma que a Coreia do Norte. E a União Soviética (1922-1991) era o país mais rico e poderoso entre eles.
Agora, a China detém as rédeas nesta relação. Com armamentos nucleares, mas ainda pobre, a Coreia do Norte precisa da ajuda de Pequim. E Putin precisa da legitimidade que Xi acaba de oferecer.
Publicamente, o presidente chinês mantém posição neutra em relação à guerra na Ucrânia. Ele não condenou o conflito, mas negou que a China estivesse ajudando a Rússia.
Parecia até que ele estava à margem da recente aproximação entre a Rússia e a Coreia do Norte. Kim enviou soldados para apoiar a invasão da Ucrânia por Putin, em troca de dinheiro e tecnologia.
Mas, agora, Xi parece defender seus dois vizinhos, mesmo enquanto eles continuam a atacar Kiev.
“A humanidade atual enfrenta novamente a escolha entre a paz ou a guerra, o diálogo ou o confronto, ganhos mútuos ou soma zero”, declarou o presidente chinês à multidão presente e aos milhões de pessoas que assistiam à cobertura do desfile pela TV estatal em todo o país.
A China é uma “grande nação que nunca é intimidada por nenhum agressor”, declarou Xi.
O desfile militar que se seguiu pretendia mostrar exatamente isso. Foi uma exibição de poder, precisão e patriotismo.
O evento começou com uma salva de 80 tiros, para marcar os 80 anos da vitória chinesa contra o Japão na Segunda Guerra Mundial, que pôs fim a uma brutal ocupação do país.
O som ecoou em cada canto da praça, onde 50 mil espectadores, alguns deles veteranos de guerra, estavam sentados em silêncio.
Seguiu-se o coral, com todos os seus membros aparecendo espaçados exatamente na mesma distância, enquanto as câmeras os percorriam.
Eles cantaram em perfeita harmonia: “Sem o Partido Comunista, não existe a China moderna.” E cada verso era marcado pelos punhos erguidos.
O presidente Xi seguiu de carro por toda a extensão do desfile para inspecionar suas tropas, enquanto cada unidade de batalha seguia marchando, em turnos, atrás do seu líder. Cada passo sincronizado sobre o asfalto reverberava nas tribunas.
Os tanques foram os primeiros a exibir seus roncos, durante a exibição dos novos armamentos chineses. Mas eles pareciam antigos em comparação com o que se viu em seguida.
Um novo míssil com capacidade nuclear, que pode ser lançado de terra, mar e ar. Mísseis antinavios hipersônicos. Armas a laser para defesa contra ataques de drones. Novos drones aéreos e subaquáticos, que podem espionar seus alvos.

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Os Estados Unidos ainda podem deter sua vantagem desenvolvida ao longo dos anos e pelo seu envolvimento em conflitos em todo o mundo. Mas, sem dúvida, a China está construindo um exército para rivalizar com os americanos.
A demonstração de força da quarta-feira (3/9) foi dirigida a Washington e seus aliados, bem como ao resto do mundo. E também para Putin e Kim, que sabiam o significado do que estavam olhando.
“O grande rejuvenescimento da nação chinesa não pode ser detido”, declarou Xi no seu discurso, tentando promover o orgulho da nação.
Ocidente preocupado
Sua retórica parece estar funcionando para algumas pessoas.
Em uma ponte sobre o rio Tonghui, em Pequim, multidões se reuniram longe do trajeto principal do desfile, para tentar ver os sobrevoos dos militares. E Rong, de 30 anos, declarou ter achado o desfile comovente.
“Valorizar este momento é o mais fundamental que podemos fazer”, afirmou ele. “Acreditamos que iremos retomar Taiwan até 2035.”
Esta é a retórica temida por muitos na ilha autogovernada de Taiwan, considerada por Pequim uma província separatista que, um dia, será unida ao continente. E Xi não descarta o uso da força para atingir este objetivo.
Os armamentos exibidos na quarta-feira (3/9), muitos deles enfatizando as capacidades navais da China, devem ter preocupado os líderes taiwaneses.
O espetáculo também preocupa muitas nações ocidentais, especialmente na Europa, que ainda debatem como pôr fim à guerra na Ucrânia. Muitas delas não estiveram presentes ao desfile.
Han Yongguang, de 75 anos, minimizou qualquer sugestão de que os líderes ocidentais tivessem evitado a comemoração.
“Cabe a eles decidir se vêm ou não”, segundo ele. “Eles têm inveja do rápido desenvolvimento da China.”
“Honestamente falando, eles são fundamentalmente agressivos. Estamos totalmente comprometidos com a prosperidade comum da humanidade. Somos diferentes.”
Este desfile alimentou uma onda de nacionalismo, em uma época em que a China enfrenta sérios desafios domésticos: sua lenta economia, a crise imobiliária, o envelhecimento da população, alto nível de desemprego entre os jovens e governos locais mergulhados em dívidas.

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Por mais confiante que a China pareça no cenário mundial, o presidente Xi precisa encontrar uma forma de fazer com que sua florescente classe média deixe de se preocupar com o futuro.
O crescimento econômico da China antes parecia incansável, mas, agora, a situação mudou. E este desfile, com toda a retórica sobre um antigo inimigo (o Japão), pode ser uma distração bem recebida.
Após uma longa exibição de armamentos de primeira linha, incluindo mísseis nucleares, o desfile foi concluído com milhares de pombos e balões, liberados pelos céus de Pequim.
A comemoração — as canções, as marchas, os mísseis, os drones e até os “lobos-robôs” — não era tanto sobre a luta chinesa.
Na verdade, foi sobre o ponto a que a China chegou — e como ela está alcançando os Estados Unidos e questionando sua supremacia.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL