Diante do avanço do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre atribuições constitucionais de outros Poderes e das prerrogativas da advocacia, a seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) anunciou a criação de uma comissão para tratar da reforma do Judiciário — com foco, entre outros pontos, na “contenção” dos excessos e da “politização” da Corte.
A iniciativa, no entanto, representa uma reação tímida: os nomes escolhidos para compor o grupo são, em sua maioria, pouco críticos à atuação do STF.
Um dos idealizadores da comissão que avaliará a reforma do Judiciário, o presidente da OAB-SP, Leonardo Sica, disse à Gazeta do Povo que concorda com a defesa “intransigente” da Corte como a instituição brasileira de defesa da Constituição, mas ponderou que o Tribunal precisa ser “melhorado” para não perder a credibilidade.
“A defesa do Supremo passa pela reforma do Supremo. Porque o Judiciário é um órgão que, além de resolver conflitos, garante a confiança da população na democracia. O que todo mundo vê é um movimento de perda de confiança […] Defender não significa defender como ele está hoje”, pontuou Sica.
O presidente da seccional paulista disse compreender a “reação enérgica” da Corte após os atos de 8 de janeiro de 2023. Ele afirmou que, passado esse momento de exceção, é necessário “normalizar a atuação do Tribunal para todo o resto”, pois o STF deve “defender a Constituição, não julgar pessoas”.
No lançamento da comissão, Sica ressaltou que “um tribunal que julga muitos políticos, e o Supremo julga políticos em excesso, acaba se politizando naturalmente”. Para ele, a “tentativa de golpe aconteceu”, precisa ser “processada e punida”, mas, “ao lado disso, o alargamento da competência criminal coloca na perspectiva do Supremo [a possibilidade de] se tornar um tribunal criminal enorme para sempre. Isso é muito ruim, é disfuncional”, enfatizou.
Comissão defende “autocorreção” do STF, mas sem “revanchismo”
Durante o lançamento da iniciativa, os membros do colegiado destacaram que não estão atrás de “revanchismo” contra o STF em meio às crescentes críticas às atuações dos ministros. A comissão conta com a participação da ministra aposentada Ellen Gracie, indicada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ela foi a primeira mulher indicada ao Supremo.
Ela considera que o momento para as discussões “é adequado”, pois o “Judiciário está sob crítica violenta de todos os lados” e “não agrada a ninguém”. Outro ex-membro da Corte no colegiado é Cezar Peluso, que foi indicado ao cargo durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Também fazem parte do grupo os ex-ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo (governo Dilma Rousseff) e Miguel Reale Jr. (governo FHC); a cientista política Maria Tereza Sadek; o diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Oscar Vilhena; a professora da FGV Direito SP Alessandra Benedito; e os ex-presidentes da OAB Patricia Vanzolini (OAB-SP) e Cezar Britto (OAB Nacional).
Eles destacaram que o intuito dos trabalhos não é agir contra o Supremo, mas fazer um diagnóstico sobre o cenário atual e propor mudanças. “É uma comissão a favor da Justiça, não é uma comissão contra a Justiça, mas é uma comissão crítica”, disse Vilhena. Sica afirmou que “o princípio mais democrático que toda instituição tem é a capacidade de autocorreção”.
Em relação ao cenário de tensão entre os Poderes, o presidente da OAB-SP afirmou que o Legislativo está ausente no debate e, por essa razão, o Judiciário avança nas discussões. Ele disse considerar que projetos de lei que discutem a reforma judiciária são uma forma de “revanchismo”.
O que pode mudar, caso a comissão tenha sucesso
Entre os pontos a serem tratados pela comissão estão a proposta de limitação do mandato de ministros do STF para até 15 anos, os critérios para julgamentos virtuais, ferramenta usada pelo Supremo para julgar os presos nos atos de 8 de janeiro de 2023, direito à sustentação oral síncrona, ou seja, em tempo real, interagindo com o tribunal presencialmente ou por videoconferência.
O colegiado também abordará as regras do foro especial por prerrogativa de função motivado pelo vai-volta de entendimentos do STF. A mudança mais recente, de março deste ano, ampliou o foro privilegiado para manter investigações na Corte mesmo depois do fim dos mandatos. O movimento garantiu que os inquéritos que têm o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) como alvo, principalmente a ação penal sobre a suposta tentativa de golpe de Estado em 2022, permaneçam no Supremo.
Além disso, a comissão discutirá critérios sobre a imparcialidade dos magistrados. Sica afirmou que não há no país atualmente regras claras em relação ao tema. “Ou seja, quando o juiz pode ou não pode julgar determinada causa. Quando ele pode ou não se pronunciar em público sobre uma causa que julgará, ou falar sobre uma causa que ele está julgando”, disse no último dia 24.
O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, rejeitou diversos pedidos de impedimento apresentados pelas defesas dos acusados pelo suposto plano de golpe contra o ministro Alexandre de Moraes. Relator do caso, o ministro seria um dos alvos de um plano de assassinato arquitetado por militares, segundo as investigações.
Insatisfação com a OAB Nacional
Diante deste cenário, há uma insatisfação com o Conselho Federal da OAB, comandado por Beto Simonetti, reeleito para o cargo em janeiro. Sobre o a atuação nacional da entidade, o presidente da seccional do Paraná da OAB, Luiz Fernando Pereira, apontou que o posicionamento do Conselho se resume a “críticas pontuais” sobre “obviedades”.
“Nós aprovamos no conselho uma crítica aos supersalários [de juízes], o Conselho Federal não fez nada. Pedimos que o CNJ regulamente a participação dos magistrados em eventos patrocinados, o Conselho Federal não fez nada”, disse Pereira, lamentando a postura “acomodada” da OAB Nacional.
Pereira afirmou que foi convidado por Sica para contribuir com a comissão da OAB-SP. Nos dias 6 e 7 de agosto, a OAB-PR realizará um evento nacional sobre a atuação do STF, com destaque para temas como o ativismo judicial, violação do devido processo legal e o distanciamento do garantismo.
Um dos exemplos de avanço sobre as prerrogativas dos defensores, sem uma reação forte da OAB Nacional, ocorreu no final de abril, quando o presidente da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), Cristiano Zanin, proibiu advogados e jornalistas de entrarem com celulares no plenário durante o segundo julgamento de denunciados por suposta tentativa de golpe.
Na ocasião, Zanin disse a uma comitiva da OAB, liderada por Simonetti, que a restrição foi determinada “com base no poder de polícia do presidente da Primeira Turma, após consenso entre os integrantes do colegiado, diante de questões específicas daquele julgamento”. A OAB não se pronunciou mais sobre o caso e o STF avançou: na acareação entre o tenente-coronel Mauro Cid e o general Braga Netto, os advogados foram proibidos de usar seus celulares. Até agora, questionada, a OAB continua sem se manifestar sobre o fato.
Outro exemplo de violação das prerrogativas dos advogados é a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de restringir sustentações orais dos advogados. Sobre a determinação, o presidente da OAB-SP defendeu que o Judiciário não pode ser “governado por normas de gabinete”. “Juízes não têm o monopólio de administrar a Justiça. Essa é uma tarefa que tem que ser compartilhada com a sociedade”, disse Sica.
Ele reforçou que a administração da Justiça deve ser conduzida com senso de cooperação entre a advocacia, a academia, o Ministério Público e sociedade civil. “A cooperação é aquilo que, no nosso ponto de vista, vemos como a única via de acesso para o Judiciário dar conta de tamanhos desafios que o Brasil joga em seu colo. Por isso, a falta de receptividade à cooperação e o distanciamento nos preocupam muito”, disse.
OAB Nacional silencia enquanto reclamações aumentam
As reclamações sobre sustentações gravadas não são uma novidade para os advogados. Em 2020, mais de uma centena de defensores — entre ex-ministros do STF, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ex-presidentes da OAB — peticionaram contra o avanço da modalidade. No dia do lançamento da comissão, José Eduardo Cardozo afirmou que ao gravar a sustentação oral de defesa não sabe “se efetivamente ela será assistida nos gabinetes dos magistrados”.
Ao discursar no STF na abertura do ano Judiciário, o presidente da OAB, Beto Simonetti, afirmou que “vídeo gravado não é sustentação”. Ele disse acreditar que o “diálogo mais uma vez nos governará e acharemos a alternativa apropriada”. A declaração foi feita em fevereiro deste ano e nenhuma mudança na modalidade foi efetivada. Na abertura do 13º Fórum de Lisboa, conhecido como “Gilmarpalooza”, na semana passada Simonetti, silenciou sobre esse e outros assuntos e afirmou que a OAB Nacional é “defensora intransigente” do STF.
A insatisfação da categoria faz com que o formato das eleições para a escolha da cúpula da OAB Nacional volte à discussão. O Conselho Federal representa mais de 1,4 milhão de advogados no Brasil.
Para a definição, somente 81 conselheiros federais, três de cada seccional tem direito a votar. O presidente da seccional do Paraná da OAB, Luiz Fernando Pereira, defendeu a adoção de eleições diretas na entidade.
“Para trocar [o sistema] tem que mudar a lei. Nos últimos 30 anos, desde que esse estatuto entrou em cena, só houve uma disputa; o resto foi chapa única, porque o sistema foi feito para não funcionar. E não está funcionando, vão ganhando as eleições aqueles que se articulam internamente completamente desconectados da advocacia”, disse Pereira.
Sica defende que o projeto de lei para as eleições diretas deve ser elaborado a partir do diálogo com o próprio Conselho Federal. “É uma demanda muito forte da base da advocacia. Entendemos que o Conselho Federal precisa passar por essa discussão. Se vai aceitar a ideia ou não, democraticamente aceitamos que nossa ideia possa não prevalecer, mas a gente insiste que é hora dessa discussão ser feita”, afirmou o presidente da seccional paulista.
Esperança em Fachin como presidente do STF
A comissão deve entregar, em junho de 2026, ao presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (União-AP), e ao próximo presidente do Supremo, Edson Fachin, duas propostas, uma delas será o Código de Conduta para Magistrados. Fachin sucederá o ministro Luís Roberto Barroso no comando do STF em setembro deste ano. Sica destacou que Fachin foi “muito receptivo” sobre as propostas.
O presidente da seccional do Paraná da OAB, Luiz Fernando Pereira, afirmou que a presidência de Fachin é um ponto de “esperança” para a advocacia. “Fachin pode fazer uma gestão histórica, pode combater corporativismo do Poder Judiciário e, quem sabe, o movimento mais importante a ser feito é ter um olhar crítico em relação a esses movimentos corporativistas que estão desmoralizando o sistema Judiciário”, enfatizou Pereira.
Fonte. Gazeta do Povo