
A decisão de Gilmar Mendes que, na prática, inviabiliza o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) consolida um cenário de arbítrio da Corte. Após anos de tolerância a decisões que extrapolam os limites constitucionais do STF, o Congresso Nacional – especialmente na figura dos presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados – precisa mostrar força e adotar uma ofensiva dura, com medidas concretas, para conter abusos.
O decano do STF, Gilmar Mendes, atuou como poder legislador e retirou a prerrogativa dos senadores de apresentar pedidos de impeachment, assim como a do presidente do Senado de pautá-los. Segundo a determinação do ministro, apenas o Procurador-Geral da República, figura historicamente alinhada ao STF, poderá apresentar uma denúncia contra algum membro da Corte. A decisão será apreciada pelo plenário do Supremo em julgamento virtual entre os dias 12 e 19 de dezembro.
Em resposta à canetada de Gilmar, senadores e deputados prometeram tirar da gaveta diversos projetos que enquadram o STF e estão parados nas duas Casas legislativas, como uma proposta que tenta limitar a possibilidade de decisões monocráticas de ministros do STF e outra que reformula a Lei do Impeachment.
Fabrício Rebelo, pesquisador em Direito e segurança pública, explica que a solução para o cenário atual de excessos do Judiciário é mais complexa. “Essa questão é muito mais profunda, pois envolve a disposição dos Poderes Republicanos estabelecida no próprio texto constitucional, no qual o Judiciário tem a última palavra sobre qualquer tema, até mesmo para dizer que essa proposta [que pretende proibir as decisões monocráticas] é inconstitucional”, afirma.
Alcolumbre ameaça, mas negocia com o STF
No mesmo dia em que Gilmar Mendes destituiu o Senado da função de pautar processos de impeachment contra ministros o STF, o presidente da Casa, o senador David Alcolumbre (União Brasil-AP), ensaiou uma reação com um discurso duro no plenário.
Irritado, ele disse que cogitava reestabelecer as regras suspensas por Gilmar, preservando as prerrogativas do Senado em relação ao processo de impeachment contra ministros do STF, por meio de um projeto de lei já em tramitação. Em seguida, defendeu ainda o projeto que limita as decisões monocráticas de ministros da Corte.
“As prerrogativas do Poder Legislativo são conquistas históricas e fundamentais para a sociedade, e que eventual frustração desses direitos sempre merecerá pronta afirmação aqui, no Senado Federal, instância legítima de defesa dessas garantias. Se preciso for, inclusive, com a sua positivação na Constituição Federal, através de emendamento”, disse.
Nos dias seguintes, rumores de uma saída negociada entre Alcolumbre e STF ganharam força. Nos bastidores, cresce a expectativa de que o Congresso aprove a nova lei do impeachment, construída em termos alinhados com a Corte, uma saída que mantém o STF no controle do país.
Mudança nas regras das decisões individuais de ministros do STF é medida questionável e paliativa
Outra providência tomada no Congresso que não resolve o cenário de abusos do STF foi a aprovação na Câmara dos Deputados, no mesmo dia da decisão de Gilmar, de um projeto de lei que restringe decisões individuais de ministros do STF.
Mesmo que o texto passe pelo Senado e a legislação que rege as decisões individuais de ministros do STF seja alterada, nada assegura que ela será obedecida. Além disso, em um cenário normal, as decisões monocráticas têm sua função no funcionamento de uma democracia.
“As decisões monocráticas têm uma relevância destacada em diversas situações de urgência, nas quais não é possível esperar o julgamento de mérito. Encontrar o equilíbrio entre a necessidade dessas decisões e a preservação da competência entre os Poderes é justamente o grande desafio que a estrutura republicana brasileira hoje enfrenta”, explica Rebelo.
Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo afirmam, por exemplo, que a alteração da Lei de Impeachment feita por Gilmar Mendes não atende a nenhum dos requisitos previstos em lei para a concessão de uma decisão dessa natureza. Em outras palavras, a mudança das regras não assegura que os ministros cumpram o que está na lei.
Especialistas apontam a necessidade de reformas estruturais no Judiciário
Felipe Rodrigues, cientista político e mestre em Poder Legislativo, avalia que o fato de o presidente do Senado ter em mãos propostas de alterações na lei contra o STF pode lhe dar vantagens em negociações. “Com essa ofensiva frente ao STF, Alcolumbre reafirma protagonismo institucional e ganha uma moeda de troca, que pode inclusive servir como instrumento de pressão em outras negociações”, afirma.
O cientista político destaca, no entanto, que a proposta não enfrenta o problema de fundo, pois não foi desenhada para isso. “Se Alcolumbre quisesse enfrentar a concentração de poder no STF, ele procuraria outras propostas mais estruturais e com propostas de reformas mais abrangentes e uma discussão mais ampla sobre os limites constitucionais”, analisa.
Para Bruno Coletto, doutor em Direito pela UFRGS e cientista político, é preciso restabelecer a competência constitucional, buscando retirar o Supremo da posição de legislador ordinário e julgador de tudo. “Várias medidas podem ser citadas, sendo que muitas delas possuem precedentes em outas constituições democráticas, como a possibilidade de o Congresso reverter uma decisão do Supremo, a facilitação do trâmite do impeachment, a limitação do tempo de mandato dos ministros, e mesmo o fim ou a redução dos casos de foro privilegiado, entre outras”, exemplifica.
Poder excessivo do STF é fruto da tolerância de inúmeras decisões que extrapolaram sua competência
A recente decisão de Gilmar Mendes é mais um capítulo de uma série de excessos cometidos pelo STF, principalmente desde 2019, após a abertura do Inquérito das Fake News. Na ocasião, o tribunal passou a investigar críticas na internet contra seus ministros usando o artigo 43 do regimento interno. A manobra é bastante controversa, pois o dispositivo, na verdade, autoriza a abertura de inquéritos apenas em casos de ataques às dependências físicas do tribunal.
A partir daí, jornalistas, cidadãos comuns e até parlamentares foram censurados e punidos pelo Supremo. Em 2021, o ex-deputado federal Daniel Silveira foi preso por ofender ministros. Outros parlamentares como Filipe Barros, Bia Kicis e Carla Zambelli também foram alvos. Recentemente, tribunais inferiores passaram a adotar o entendimento do STF, punindo deputados federais e violando a liberdade parlamentar.
Coletto destaca que a expansão de poder abrange todo o Poder Judiciário e é sustentada pela mentalidade e a cultura jurídica que está em voga. “Ao mesmo tempo que os agentes do direito e da política precisam se autoconter e entender seu papel e seu limitado espaço constitucional, também é preciso que mudanças institucionais induzam tal comportamento”, destaca.
Rebelo também enxerga que a solução passaria por uma autocontenção do próprio Supremo. “Corrigir isso rapidamente passa, inexoravelmente, por um exercício de autocontenção da própria Corte, pois, na prática e como estamos vendo de modo cada vez mais claro, só ela própria pode estabelecer seus limites”, conclui.
Fonte. Gazeta do Povo


