
Crédito, Arquivo pessoal
O Supremo Tribunal Federal (STF) precisou agir para proteger o Brasil diante de ataques à democracia durante o governo de Jair Bolsonaro e após sua derrota nas eleições de 2022. Mas é preciso que, assim que a crise for deixada para trás, a Corte recue e retorne ao seu lugar de direito.
Essa é a avaliação do cientista político e autor do best-seller Como as democracias morrem, Steven Levitsky.
“Idealmente, o STF reconhecerá que precisa recuar. E alguns ministros, creio eu, já reconheceram publicamente que esta foi uma situação de emergência em que a interferência foi necessária para defender a democracia”, afirmou Levitsky em entrevista concedida à BBC News Brasil após a condenação pelo STF de Bolsonaro e mais sete réus por golpe de Estado.
“Mas, no momento em que a crise passar, o tribunal precisa ser um pouco mais circunspecto em seu comportamento.”
Segundo o professor da Universidade Harvard, é “muito difícil lidar com uma instituição que recebeu um poder enorme” e fazê-la voltar para seu devido lugar.
“Ninguém gosta de abrir mão do poder voluntariamente”, afirma Levitsky, argumentando que, em uma democracia, é preciso muito cuidado com a quantidade de poder atribuída a órgãos não eleitos.
“Faz algum sentido que tenha sido o Supremo Tribunal Federal no Brasil, e acho que foi, em última análise, positivo para a democracia que ele tenha feito isso”, disse o autor na ocasião, acrescentando ainda que a Corte esteve em “seu devido lugar” ao julgar o ex-presidente por tentativa de golpe.
O autor de Como as democracias morrem admitiu ter tratado do assunto com os próprios ministros do STF e afirmou que, caso o tribunal não se reposicione voluntariamente, cabe à sociedade civil e ao Congresso fazer pressão para garantir a normalidade.
“Pode ser [um processo] lento e gradual, mas existem maneiras democráticas de reequilibrar o poder no Brasil”, disse.
“Fux tem direito a uma opinião dissidente. Isso acontece nos tribunais o tempo todo e não tem nada de incomum”, disse.
Mas o governo dos EUA e os bolsonaristas certamente vão se aproveitar do posicionamento do ministro, opina.
“E se os bolsonaristas adotarem algum tipo de estratégia extrajudicial para tentar reverter esse resultado ou, Deus nos livre, dar um golpe, eles certamente apontarão para essa opinião dissidente.”
O ministro Luiz Fux foi o único a se posicionar de forma diferente dos demais juízes, votando para que o processo fosse anulado e absolvendo Bolsonaro por todos os cinco crimes denunciados pela Procuradoria-Geral da República.
Porém, por maioria na Primeira Turma do STF, o ex-presidente foi condenado a 27 anos e 3 meses de prisão pelos crimes de liderança de organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de Estado, dano contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.
Mas Steven Levitsky afirma estar otimista com o futuro da democracia brasileira. “Não é fácil proteger a democracia de um ex-presidente autoritário, e as instituições brasileiras merecem muito crédito por isso”, diz.
“Os americanos fariam bem em aprender com o Brasil, mas o governo americano gostaria exatamente do oposto.”
Leia abaixo os principais trechos editados da entrevista com o autor.
BBC News Brasil – Que mensagem o Brasil envia ao resto do mundo ao condenar um ex-presidente por tentativa de golpe?
Steven Levitsky – A mensagem mais importante é a de que as democracias podem se defender. Democracias em todo o mundo estão enfrentando crescentes ameaças iliberais, muitas vezes autoritárias, que surgem não da maneira tradicional, por meio de golpes militares, [mas por meio de líderes] que são eleitos, muitas vezes eleitos livremente, e que depois se voltam contra a democracia e a subvertem.
Foi assim que a democracia ruiu na Hungria, na Turquia, na Venezuela, na Nicarágua, em El Salvador — e é o que está acontecendo nos Estados Unidos. A última vez em que as democracias enfrentaram esse tipo de ameaça interna foi nas décadas de 1920 e 1930. Uma das lições daquela época, e uma das lições dada pelo Brasil, é que as democracias podem e devem se defender vigorosamente. E isso significa defender o Estado de Direito e responsabilizar os líderes que tentam subverter a democracia.
Coreia do Sul e Brasil são os dois casos de democracias que se defenderam vigorosamente contra ameaças autoritárias nos últimos anos. Eles são muito diferentes, mas são exemplos com os quais as democracias do mundo todo deveriam aprender.

Crédito, Reuters
BBC News Brasil – O senhor espera que isso tenha algum impacto nos Estados Unidos?
Levitsky – Não sei. Os americanos fariam bem em aprender com o Brasil, mas o governo americano gostaria exatamente do oposto. É provável que eles [governo dos EUA] estejam cientes do contraste entre o desempenho relativamente eficaz das instituições no Brasil em responsabilizar um ex-presidente que tentou subverter a democracia e o fracasso total das instituições americanas em fazer o mesmo. Espero que os americanos aprendam.
Mas há uma chance, pelo menos ouvindo as declarações do Secretário de Estado Marco Rubio, de que os Estados Unidos, bizarramente, respondam ao esforço do Brasil de responsabilizar um ex-presidente criminoso com mais sanções.
Os Estados Unidos estão efetivamente punindo o Brasil por fazer o que os americanos deveriam ter feito: responsabilizar um líder que atacou a democracia e tentou subverter a democracia.
BBC News Brasil – Quais poderiam ser essas sanções mencionadas pelo Secretário de Estado Marco Rubio?
Levitsky – É bem bizarro usar a política comercial para punir ou tentar subverter o processo judicial e democrático no Brasil, mas foi exatamente o que os Estados Unidos fizeram quando impuseram as sanções em julho. E aplicar a Lei Magnitsky — uma das sanções mais severas disponíveis na lei para governos dos EUA, que já foi usada no passado para algumas das piores violações de direitos humanos, — contra um juiz da Suprema Corte em uma democracia como o Brasil é simplesmente bizarro.
O governo dos EUA está empregando muita desinformação e agindo como se o Brasil, uma democracia com falhas, mas ainda assim uma democracia, fosse algum tipo de Estado desonesto que está cometendo graves violações de direitos humanos. É assim que estão tratando o Brasil — e precisamos dizer, é tudo mentira.
Não sei como governo dos EUA redobrará sua aposta agora, mas suponho que com ainda mais sanções.
BBC News Brasil – Há especulações sobre tarifas comerciais ainda maiores ou a imposição da Lei Magnitsk contra outros ministros do STF. Alguma dessas hipóteses parece mais provável?
Levitsky – Ambas são possíveis. Não sou muito bom em prever as ações desse governo dos EUA — ele [o governo de Donald Trump] é bem imprevisível e faz coisas bizarras e, muitas vezes, ilegais. Mas eu não ficaria surpreso se todos os juízes que votaram pela condenação de Bolsonaro fossem alvo de novas sanções.

Crédito, EPA
BBC News Brasil – O ministro Luiz Fux votou pela absolvição de Bolsonaro e alguns dos demais réus acusados. O fato de a decisão final não ter sido unânime tem algum impacto na forma como a sociedade entende o resultado do julgamento?
Levitsky – Claro. Obviamente um placar de 4 a 1 é mais decisivo do que um de 3 a 2, mas sempre que há um voto dissidente e uma opinião dissidente — e Fux foi bastante estridente em sua opinião — se introduz uma certa dose de dissenso no resultado.
Mas é assim que os tribunais funcionam. Muitas decisões importantíssimas na Suprema Corte dos EUA são tomadas com placares de 5 a 4 ou 6 a 3, e não há nada de extraordinário nisso. Mas sim, acho que a decisão do STF teria um pouco mais de impacto com um placar de 5 a 0.
BBC News Brasil – Fux ecoou muitas das críticas feitas pelas defesas dos réus em sua decisão e está sendo aclamado como um herói pelos apoiadores de Bolsonaro. Qual pode ser o impacto disso?
Levitsky – Olha, é assim que o processo judicial funciona: juízes têm opiniões diversas. Raramente um tribunal do tamanho do STF vai ser unânime em alguma coisa. Portanto, não há nada de incomum ou até problemático em uma opinião divergente.
Claro, Bolsonaro e os bolsonaristas vão se agarrar a isso — ele votou exatamente como eles queriam que ele votasse. E aqueles que querem tentar desacreditar, subverter ou reverter a decisão usarão essa opinião minoritária. O governo dos EUA vai usar, os bolsonaristas vão usar. E se os bolsonaristas adotarem algum tipo de estratégia extrajudicial para tentar reverter esse resultado ou, Deus nos livre, dar um golpe, eles certamente apontarão para essa opinião dissidente.
Mas, novamente, Fux tem direito a uma opinião dissidente. Isso acontece nos tribunais o tempo todo e não tem nada de incomum nisso.

Crédito, EPA
BBC News Brasil – O herdeiro político de Bolsonaro, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, passou a adotar um discurso mais agressivo em relação ao Supremo Tribunal Federal e prometeu perdoar os crimes de Bolsonaro se ele se tornar presidente. Qual seria o impacto de um perdão presidencial em um caso como este?
Levitsky – É complicado. O Tarcísio não é realmente o herdeiro político de Bolsonaro. Ele não ama o Bolsonaro e o Bolsonaro não ama ele. (…) Mas o Tarcísio é um cara inteligente e sabe que não pode renegar completamente o bolsonarismo e esperar ganhar votos da direita. Por isso, ao longo de sua carreira política relativamente curta, ele tem feito uma dança muito sofisticada, mantendo-se próximo o suficiente de Bolsonaro para não alienar seus apoiadores, mas também conservando seu próprio perfil.
Ele não se esforçou muito para reverter completamente esse processo judicial, de modo que Bolsonaro pudesse ser candidato em 2026 como Trump foi nos EUA. Tarcísio concordou [com o julgamento] porque significa que ele, e não o Bolsonaro, é o candidato.
Há muito apoio entre os conservadores, e até mesmo uma aceitação no establishment brasileiro, de um possível perdão para Bolsonaro ou talvez uma mudança para prisão domiciliar, ou redução da pena no futuro. Mas o mais importante é que há um consenso na elite política brasileira, ou em grande parte dela, de que o Bolsonaro tem que ficar de fora [das eleições]. O cara tentou organizar um golpe e é perigoso demais para ser candidato em 2026.
O Brasil não quer seguir o caminho que os Estados Unidos seguiram, reelegendo imediatamente um líder golpista e se lançando em um caminho autoritário. Os brasileiros vão aprender a lição e acho que até o Tarcísio até sabe disso.
Seria um erro perdoá-lo [Bolsonaro], porque é importante responsabilizar aqueles que atacam a democracia. (…) Mas conceder um perdão presidencial depois que ele já estiver fora da disputa eleitoral não é a mesma coisa que bloquear sua condenação. Precisamos estar cientes de que Tarcísio está fazendo uma dança [política].
BBC News Brasil – Existem maneiras de minimizar os esforços para desacreditar as instituições democráticas? Como o Brasil deve agir daqui para frente para continuar protegendo sua democracia?
Levitsky – Infelizmente, o Brasil tem um movimento político de direita muito parecido com o dos Estados Unidos, que é bastante antidemocrático. (…) Há uma força política do movimento bolsonarista cujo comportamento tem sido, em alguns momentos, abertamente antidemocrático. E esses caras vão tentar desacreditar as instituições democráticas porque querem subvertê-las e, potencialmente, até mesmo derrubá-las.
É realmente muito importante que uma coalizão ampla, que vá da esquerda à direita, trabalhe para defender as instituições democráticas do Brasil. E aqui o histórico brasileiro tem sido muito superior ao dos Estados Unidos. Quando Bolsonaro perdeu em 2022, todas as principais figuras da direita, incluindo Tarcísio, aceitaram os resultados da eleição. Eles não agiram como os republicanos nos Estados Unidos, (…) eles parabenizaram o Lula e seguiram em frente. É isso que se faz em uma democracia.
E quando Bolsonaro, como presidente, tentou minar o processo eleitoral e desmantelar o eficaz sistema de votação eletrônica brasileiro, o Congresso, incluindo os seus membros conservadores, o impediram. Ou seja, os [políticos] conservadores brasileiros têm um histórico de, mesmo flertando com o Bolsonaro, se levantar e defender as instituições democráticas. E é isso que eles precisam continuar fazendo.

Crédito, Victor Piemonte/STF
Levitsky – Essa é uma pergunta difícil. Na verdade, conversei com vários ministros do Supremo Tribunal Federal depois da nossa entrevista anterior sobre essa mesma questão.
É muito difícil lidar com uma instituição que recebeu um poder enorme e fazê-la voltar para a sua gaveta. Ninguém gosta de abrir mão do poder voluntariamente. Esse foi um dos problemas que o Brasil enfrentou na década de 1980: levou muitos anos para empurrar as Forças Armadas de volta ao seu papel apropriado quando, saindo da transição [pós- ditadura militar], elas tinham muito poder. Isso ainda é uma luta no Brasil, na verdade. O STF é um ator mais pró-democrático do que as Forças Armadas, não é algo totalmente comparável. Mas é um órgão não eleito e em uma democracia precisamos ser muito cuidadosos com a quantidade de poder que lhe atribuímos.
Idealmente, o STF reconhecerá que precisa recuar. E alguns ministros, creio eu, já reconheceram publicamente que esta foi uma situação de emergência em que a interferência foi necessária para defender a democracia. Mas, no momento em que a crise passar, o tribunal precisa ser um pouco mais circunspecto em seu comportamento.
Para além disso, [tem que haver] pressão pública, trabalho político, dos políticos, da sociedade civil, de intelectuais, para pressionar e convencer o tribunal de que esse excesso não é aceitável, não é legítimo. E, em última instância, se necessário, cabe ao Congresso aprovar leis ou reformas constitucionais que estabeleçam limites claros sobre onde o tribunal deve ou não agir.
Mas existem soluções democráticas. Pode ser [um processo] lento e gradual, mas existem maneiras democráticas de reequilibrar o poder no Brasil.
BBC News Brasil – Você está otimista quanto ao futuro da democracia no Brasil?
Levitsky – Olha, falando dos Estados Unidos, sim. A democracia brasileira tem se mostrado muito mais eficaz e saudável nos últimos anos do que a dos Estados Unidos. Não é fácil proteger a democracia de um ex-presidente autoritário, e as instituições brasileiras merecem muito crédito por isso.
O Brasil é um país grande e desigual, com sérios problemas de desigualdade, criminalidade, violência, questões raciais e estado de direito, e está muito longe de se tornar a Suíça ou o Uruguai. Mas é hoje uma democracia há quatro décadas, o período mais longo na história brasileira.
O país se consolidou como uma das democracias mais bem-sucedidas da América Latina.
Isso se demonstrou na última década, que foi muito difícil com a [pandemia de] covid-19, crise econômica, Lava Jato, altos níveis de criminalidade e Bolsonaro. A democracia brasileira mostrou, mesmo com suas limitações, que é muito robusta. Então, sim, estou otimista.
BBC News Brasil – Os mercados não estão sendo tão afetados quanto o esperado por decisões políticas vistas como antidemocráticas ou por medidas econômicas, como tarifas, adotadas por motivos pessoais e políticos. O que isso significa para o futuro da democracia?
Levitsky – Não cabe aos mercados salvar a democracia, mas sim às pessoas. Nenhum de nós — e certamente não nós que trabalham pela democracia — podemos controlar os mercados.
Nos Estados Unidos, como as instituições, o Partido Republicano e a sociedade civil falharam em controlar o Trump, nós temos contado com os mercados. [Os mercados] parecem ser a única coisa à qual ele [Trump] responde, e esse não é um bom lugar para se estar. Os mercados podem responder bem ou mal e não podemos controlar isso. Cabe às pessoas e às instituições sobre as quais elas têm influência fazer a democracia funcionar e salvá-la.
BBC News Brasil – Mas os mercados não fazem parte da democracia?
BBC News Brasil – Por quê?
Levitsky – Mercados podem existir em regimes autoritários. Havia mercados durante a ditadura militar brasileira e os mercados adoravam o [general e ex-presidente do Chile, Augusto] Pinochet. O capitalismo é compatível com regimes autoritários e com a democracia. Democracia é sobre selecionar e restringir líderes, é sobre proteger um conjunto de direitos individuais de expressão, de informação, de agir coletivamente, de protestar quando necessário.
Fonte.:BBC NEWS BRASIL